Roberto Gamito
05.11.23
Numa estrada desse país chamado vida, olho pelo retrovisor, de molde a passar o tempo e fintar os demónios, imagino algum engarrafamento, isto numa memória cultora de buracos; nomes, episódios onde o calor discursou numa afiada língua afinada, quedas ímpares, justas homenagens a Ícaro ou Satã, fracassos que, na altura, proporcionavam a novidade do abrandamento ou atrito. Os sonhos ainda não se haviam mudado para as terras da assimptota.
Não tivéssemos cortado as unhas, dava a ideia que os podíamos alcançar. Entrementes, o tempo cultivou o infinito entre nós e esses dias.
Na maioria das vezes, confundíamos amor com uma ida à loja de bugigangas. Só os apaixonados logram ficar com o papel de Duchamp. Numa embriaguez novinha em folha e de língua expedita, patetas de uma escola oblíqua cujos fôlegos se auxiliam a fim de legendar humoristicamente cada bagatela, ambos com um fervor dionisíaco. Concedo, eis o prelúdio do fogo. Nessas alturas em que o fumo era uma mensagem de mudança, estávamos no estaleiro do vulcão.
Graças à legenda, perdoem-me o frio engano de estar a ver a cena à distância, graças à paixão, o bibelot é elevado a arte onde sorrisos e olhares conspiram, revirando-o numa ala de museu, acessível tão-são a corpos conduzidos pelo singularíssimo lume em crescendo. Por esses dias, a aventura não necessitava de um grande romancista para ser escrita. Do sorriso à cama sem parar no stop; e sem recorrer a mapas.
Em cenários contíguos, ou noutras vidas, caso os universos paralelos ressuscitem os eus abortados que fomos semeando pelas cenas ebulientes que não deram em nada, sedentos que aconteça alguma coisa, de alguém hábil em pronunciar o nosso nome ontem pouco sonoro, uma médica autodidacta que, de bata e alma aberta, reabilite o coração fechado em copas, que um beijo nos desagrilhoe desta pose que herdámos de Prometeu e conceda ao fígado um horizonte mais esperançoso. Damos, por algum tempo, folga aos abutres, águias, ou corvos, dependendo dos mitos, o amor que já foi tudo, uma vez que, qual boato, é-lhe contado as Metamorfoses de Ovídio num sem-fim de boca-a-boca.
Essa gestão de encontros apontada em cima da braguilha enfunada operava na agenda a magia da multiplicação das horas. Tão fartos de palavras e tão desesperados por acção que já só desejamos ser desfigurados pela velocidade do tesão, que a fome do outro nos cale e não permita, nem por um segundo, diluir a cena, mas sim tornar a carne feita animal numa emboscada há muito orquestrada pelo inconsciente. Entramos inteiros na vida do outro, de tal forma que nos esquecemos de pôr um gravador na memória a documentar a cena. Daqui sairão uma série de quadros abstratos, que ora nos agigantam, ora nos apequenam.
Punha sempre o meu pénis à disposição. Ficava-se com a sensação que vivíamos dentro de um refrão alegre, que os passeios duravam uma dança, que o amor era uma grande canção que nos impelia à dança, mesmo nos piores momentos. Nessa idade, não damos pelo tempo a passar.
As horas ocupadas pela conversa nunca pareciam excessivas. Nessa altura, iria de gatas até ao fim do mundo se me garantisses que estarias à minha espera. Eras responsável pelo meu mundo, eu, pelo teu. Não fosse a imaginação e não me lembraria de nada desses dias, salvo o teu olhar e o meu coração a ganhar voz à medida que me aproximava do sítio que havíamos combinado.
Mudando abruptamente de faixa, elaborando uma manobra capaz de nos pôr a rezar, finalmente, pela vida, pondo-vos frente a frente com o passado, trazendo à tona os ângulos mortos, confidencio-vos que há um ponto a partir do qual cada gesto principia, de supetão, a pesar desmesuradamente — enferrujamos a meio de uma coreografia. Nem sequer nos ocorreu fotografar nada — éramos como dois leopardos das neves. Quiçá pairasse um receio que a fotografia, ao funcionar como intromissão nesse bailado improvisado pela paixão, quebrasse o encantamento. Sem provas, íamo-nos afundando numa lenda só nossa.
Às tantas foi isso que pôs termo a tudo — um disparo. Um disparo fotográfico de um biólogo de cidade quebrou a pose animalesca de dois bichos esfaimados, entretidos até então no cadáver minguante da paixão. Hoje, com pose desajeitada, e pouco digna para figurar nas fotos, sou marioneta atirada para um canto de um palco em ruínas. Uma marioneta a lamentar a sua verticalidade perdida.
Olhando novamente para trás, começo a duvidar de tudo. Sem nada a que me agarrar, sem provas, e conhecendo o lado charlatão da memória, principio a duvidar de tudo o que escrevi nestas linhas. Nada disto aconteceu senão noutro universo.
Presentemente, recorro a esse armazém quando necessito de peças para pôr a andar um poema, uma crónica, que é como quem diz, um Frankenstein feito de letras.