Roberto Gamito
02.12.21
Sem ousadia estaríamos condenados a repetir o eco mais em voga. Falar, dialogar, escrever com excessiva prudência é prestar vassalagem ao eco, à norma, ao molde. No tocante à arte é um beco sem saída.
Demoro-me nos arredores da certeza. Ausculto disfarçado de médico o peito inchado do eco, palmilho as suas fileiras de lés a lés com o fito de perceber o que organiza os seres humanos, e eis a conclusão: o medo — um medo sem rosto. Se o eco não cresce até perder o rasto da sua origem, estamos diante de um problema. Pensar é engrossar uma ideia, uma frase, é acrescentar anéis concêntricos à árvore raquítica. Se o eco repele novos acrescentos, é seguro postular que enfrentamos um dogma ou algo que se lhe aparente. Pensar é o comércio de ideias, acrescentar frases à frase inicial, que é como quem diz, é desfigurar o eco e engrandecê-lo, parodiá-lo, testar os seus limites.
O Homem contemporâneo, animal assustadiço, está assombrado pelo fantasma da oportunidade perdida. Entretém-se em simulacros, eleva papagaios a messias e por aí vai.
Uma única verdade absoluta, afirma Hannah Arendt, se pudesse existir, representaria a morte de todas as discussões, ou seja, o fim da amizade, e por conseguinte o fim da humanidade.
Sempre que o Homem se convence que alcançou algo aparentado a uma verdade absoluta ingressamos nos palcos da barbárie. É uma questão de tempo até se afiar as lâminas. Em nosso auxílio vem Camus. “O cutelo converte-se em raciocinador; a sua função consiste em refutar. A guilhotina refuta as críticas; é a contra-argumentação do Estado”. Começam paladinos da virtude e acabam no papel de algozes.
As conclusões estão intimamente ligadas à nossa forma de olhar. Se há apenas uma conclusão significa que a biodiversidade de olhares se reduziu e se abeira da extinção. Olhar único é o mesmo que dizer cegueira. Ao contrário da cegueira, digamos, clássica, esta é uma cegueira arrogante. Um cego convencido que vê. Pelo olhar podemos desenhar um retrato acertado do observador. Podemos inventariar os seus medos, as suas obsessões, as suas falhas, os seus sonhos, em suma, no que entra e no que fica de fora do olhar habita o Homem.
Qualquer olhar único é equivocado e dá azo a mal-entendidos. Qualquer fenómeno minúsculo a que se dê muita atenção torna-se num elefante. Perder a noção da dimensão das coisas é um dos sintomas de um pensamento doente. Outro é tentar impedir a ligação. As ideias são como átomos: procuram a estabilidade. Não confundamos com cristalizações. No respeitante às ideias, essa procura pela estabilidade nunca cessa.
O pensamento é bastas vezes diminuído e estropiado, em sítios mal frequentados, substituído por simulacros esfarrapados, de molde a que os embusteiros subam mais um degrau no estatuto.
Qual é o lado risível disto tudo? Cegos para a ironia e para a metáfora (convém relembrar que etimologicamente metáfora significa o transporte de um lado para outro, o salto, se preferirem, ou ainda, a não obrigação de percorrer todos os milímetros entre o ponto A e o ponto B); crêem ser galgos nas pistas da literalidade tão em voga nesta Sociedade do Cansaço, quando na verdade estão de mãos e pés atados à cadeira da sua cegueira.
Com a literalidade o mundo perde espessura, o leque de visões diminui drasticamente, por conseguinte a razão é criogenizada numa hierarquia. Surge, portanto, a ditadura da visão única. Que é como quem diz, o eclipse da razão.