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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

24.12.21

O Natal modifica a fauna da pastelaria — dão à costa novas espécies de peixes. Uns ficam com os olhos esbugalhados a olhar para a vitrine apinhada de bolos natalícios, quais peixes hipnotizados, outros, mais indecisos, são uma espécie de zorros que apontam o dedo qual florete a qualquer coisa que se assemelhe a um doce.

Há velhos em fila indiana a babar-se enquanto namoram o bolo-rei. Há os que, mais bebidos, escrevem quadras em homenagem ao bolo-rainha. E não vai um escangalhado?, pergunta o pasteleiro. Escangalhado já eu estou, riposta agilmente o velho. O Natal é época de ter mais olhos que barriga. Por esta altura, o português é uma criatura cheia de olhos. Eu, que de burro tenho sempre um pouco, olho para a cena como para um hieróglifo, tentando decifrar a sua razão de ser, da qual sei apenas que é tradição, que existe e está aí para as curvas. Não sou nem quero ser o detractor do bolo nem do Natal. Cada um é livre de encher o cu com o que mais gosta. Estranho. O Natal, exortando ao amor e à autenticidade, conduz-nos a gigantescas falsidades. Se usamos a comida para nos refugiarmos do mundo, não será o Natal a época do ano em que o Homem atinge o cume da falsidade?

Preenchemos o vazio existencial com comida, todavia ele cresce.
Teorias, teorias. Intrometem-se na minha existência e não me deixam saborear o pudim de mente vazia. Será que não consigo esquecer a morte entre garfadas? As várias teses de que o Homem é capaz de se transcender em épocas como esta poderão revelar-se meras verbosidades. É o costume, porém com uma mesa repleta.

Entrementes, chega a minha sobremesa preferida. Amaina, por agora, a tempestade.

Peixe fora de água

 


Roberto Gamito

24.12.20

É desculpável e até certo ponto agradável não nos dirigirmos ao Natal e a todos os rituais circunjacentes no tom habitualmente laudatório reservado para esta quadra festiva. Há um cansaço patente a exsudar de todos os olhares. E inegável que, embora não vencidos, fomos ao tapete mil e uma vezes durante a pandemia, há um amargo de boca em admiti-lo, mas fomos derrotados de todas as formas possíveis. E no entanto, levantámo-nos.
O vencedor baixou a crista, a empáfia tonitruante recolheu à sua caverna e ficou o leque de franzinos, cada qual a chorar na sua língua. Só um louco pode levantar a voz ao falar deste ano.

Não obstante permanecer viva, a esperança confidencia-nos que não se quer comprometer com o ano 2021. Contentemo-nos a saborear o que nos coube em sorte. O que fica é esse longo monólogo interior, repleto de queixumes, sonhos adiados devorados por vagas famintas de elipses. Há um silêncio tenso, ninguém sabe muito bem o que dizer, o que sonhar, o que lamentar. As perdas actuais e as vindouras são tantas que somos carpideiras incapazes de dar vazão a tanto cadáver pela via do grito e da lágrima.

Há um querer dizer obstruído por um nó existencial nos arredores do qual o medo e o cansaço coabitam na mesma catedral abandonada. Rezamos a vultos dos quais nada sabemos. A este propósito, talvez não seja despiciendo lembrar que, à nossa volta, engendrando todo o tipo de coreografias de sedução e ciladas, aproximam-se novas formas de nos domar, vergar, vigiar.
Que Homem vai sair disto tudo ninguém sabe.

Isto é o máximo, não consigo mais, algo que pensámos durante o ano de 2020. Diante da folha, seja física ou virtual, muitas vezes verbalizei para ninguém: Não consigo tirar de mim coisa nenhuma. O Homem foi espremido pela pandemia. O artista doutros tempos agigantar-se-ia diante deste cenário, ao passo que o actual se encolhe e se fecha em desculpas para não criar.
O mundo actual esmaga-nos sem parança.

Há vários tipos de gaiola que enformam o nosso dizer, o nosso gesto, ingresse ele no mundo dito maquinal ou no mundo da arte.
Uma mão dentro de uma infinidade de gaiolas. Ignoro o meu pensamento, ignoro o que escrevo
vectores colidem
perdem os sentidos
rã piruetando no tanque.

Socorro-me dos estilhaços para montar um mundo frágil, movediço, pouco confiável. Como seguir, num tempo como este, o conselho escrito pela poeta Luiza Neto Jorge: apontar o poema ao coração do Homem. Estamos demasiado debilitados para sobreviver ao que o poema poderia dizer de nós.

 

Natal possível, Roberto Gamito

 

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