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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

17.11.20

Enquanto não formos reduzidos a cinzas, há sempre possibilidade de administrar no outro uma dose cavalar da nossa miséria intelectual. Em tempos idos, o Homem acanhava-se aquando do momento ritual de exibir o seu magro intelecto. Gaguejava, entregava-se a barroquismos a fim de esconder o seu nada, saraivava de elogios o comparsa de diálogo de molde a tornar mais tragável a burrice que havia de lhe brotar dos lábios, ensaiava uma personagem frágil, modesta, à qual necessitaríamos de sacar informação à chapada e a custo, como se tivesse sido vítima de sequestro. Felizmente, os tempos mudaram e a estupidez, animal de mil tentáculos, é imune a obstáculos.
 
Presentemente, há uma necessidade patológica de pôr por escrito aquilo que nos turva o miolo. Onde é que isso nos levará, questiona o lúcido leitor, espécie em vias de extinção. Primeiro, é necessário atravessar esse nevoeiro de testosterona e de buços suados de raiva, a província turva do ressentimento, o que não se afigura tarefa fácil, segundo, é preciso não ser corrompido. É crucial não esquecer que a conversa nos moldes actuais é um ritual de conversão, ao qual é necessário resistir com todas as forças (e mesmo essas por vezes mostram-se insuficientes) cujo fito é transformarmo-nos noutro estúpido, possivelmente até de maior envergadura que aquele que presidiu ao ritual.
 
Nunca cessa de me espantar os cumes da empáfia alcançados pelo estúpido em cima do seu desengonçado todavia célere corcel do ressentimento, ao mesmo tempo que nos tenta seduzir com o evangelho da cólera. Como é que alguém no seu perfeito juízo (perdoem-me, bem sei que o mundo está entregue aos loucos) pode designar medíocre um escritor como Saramago? Quanto cursos, mestrados e doutoramentos é preciso tirar na Universidade dos Sem-Noção para alguém se abalançar em tais baboseiras?
 
A confiança cegante demonstrada por esta estirpe de seres humanos cujas fileiras não param de engrossar causa-me a mais genuína inveja. Tal como Cioran, desprezo a ausência do risco, da loucura e da paixão. Como sabem, o mundo não está para os vacilantes, para aqueles que se movimentam com o fardo das dúvidas às costas. Vivendo num tempo vertiginoso como é o nosso século, a confiança é normalmente o único critério que interessa. É a diferença entre ficar e abandonar, subir e descer, ganhar ou perder, em suma, entre a salvação e a maldição. O não haver tempo para nada elevou a confiança — e a confiança dos animais insuflados pela bazófia — ao Olimpo das características humanas mais desejadas.
 
Mas regressemos ao desnorte que é insultar gigantes à desgarrada, principalmente quando estes não se podem defender.
Quão destruído por dentro tens de estar para afirmar, sem que haja uma base justificativa por detrás, que um vulto como Saramago é medíocre?
Sou contra a violência, excepto em casos em que um engraçado, vindo da viela da pesporrência, se dirige a um vulto como Pessoa ou Saramago com a pergunta: Quem é? Nesse momento, o diálogo extingue-se e em seu lugar devia suceder um arraial de tabefes.
 
Saramago continua vivo, basta verificar a quantidade de ódios que gera aquando de datas comemorativas. Há os malucos da literatura, que leram três livros na diagonal em vida e pensam que são herdeiros de George Steiner, há fanáticos católicos, os quais só não incineram Saramago outra vez porque não dá, há os deturpadores da informação mais que conhecida, a saber: os desaguisados entre ele e o governo da altura, sacando limpidamente que Saramago é o mau da fita, enfim, o rol é interminável e dá-me náuseas. Camões acertou ao pôr inveja como última palavra n’Os Lusíadas. Após a inveja não há nada, só o ponto final.
 

Saramago e o império dos medíocres

 

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