É desculpável e até certo ponto agradável não nos dirigirmos ao Natal e a todos os rituais circunjacentes no tom habitualmente laudatório reservado para esta quadra festiva. Há um cansaço patente a exsudar de todos os olhares. E inegável que, embora não vencidos, fomos ao tapete mil e uma vezes durante a pandemia, há um amargo de boca em admiti-lo, mas fomos derrotados de todas as formas possíveis. E no entanto, levantámo-nos.
O vencedor baixou a crista, a empáfia tonitruante recolheu à sua caverna e ficou o leque de franzinos, cada qual a chorar na sua língua. Só um louco pode levantar a voz ao falar deste ano.
Não obstante permanecer viva, a esperança confidencia-nos que não se quer comprometer com o ano 2021. Contentemo-nos a saborear o que nos coube em sorte. O que fica é esse longo monólogo interior, repleto de queixumes, sonhos adiados devorados por vagas famintas de elipses. Há um silêncio tenso, ninguém sabe muito bem o que dizer, o que sonhar, o que lamentar. As perdas actuais e as vindouras são tantas que somos carpideiras incapazes de dar vazão a tanto cadáver pela via do grito e da lágrima.
Há um querer dizer obstruído por um nó existencial nos arredores do qual o medo e o cansaço coabitam na mesma catedral abandonada. Rezamos a vultos dos quais nada sabemos. A este propósito, talvez não seja despiciendo lembrar que, à nossa volta, engendrando todo o tipo de coreografias de sedução e ciladas, aproximam-se novas formas de nos domar, vergar, vigiar.
Que Homem vai sair disto tudo ninguém sabe.
Isto é o máximo, não consigo mais, algo que pensámos durante o ano de 2020. Diante da folha, seja física ou virtual, muitas vezes verbalizei para ninguém: Não consigo tirar de mim coisa nenhuma. O Homem foi espremido pela pandemia. O artista doutros tempos agigantar-se-ia diante deste cenário, ao passo que o actual se encolhe e se fecha em desculpas para não criar.
O mundo actual esmaga-nos sem parança.
Há vários tipos de gaiola que enformam o nosso dizer, o nosso gesto, ingresse ele no mundo dito maquinal ou no mundo da arte.
Uma mão dentro de uma infinidade de gaiolas. Ignoro o meu pensamento, ignoro o que escrevo
vectores colidem
perdem os sentidos
rã piruetando no tanque.
Socorro-me dos estilhaços para montar um mundo frágil, movediço, pouco confiável. Como seguir, num tempo como este, o conselho escrito pela poeta Luiza Neto Jorge: apontar o poema ao coração do Homem. Estamos demasiado debilitados para sobreviver ao que o poema poderia dizer de nós.
![Natal possível, Roberto Gamito]()