Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

05.11.23

Numa estrada desse país chamado vida, olho pelo retrovisor, de molde a passar o tempo e fintar os demónios, imagino algum engarrafamento, isto numa memória cultora de buracos; nomes, episódios onde o calor discursou numa afiada língua afinada, quedas ímpares, justas homenagens a Ícaro ou Satã, fracassos que, na altura, proporcionavam a novidade do abrandamento ou atrito. Os sonhos ainda não se haviam mudado para as terras da assimptota.
Não tivéssemos cortado as unhas, dava a ideia que os podíamos alcançar. Entrementes, o tempo cultivou o infinito entre nós e esses dias.

Na maioria das vezes, confundíamos amor com uma ida à loja de bugigangas. Só os apaixonados logram ficar com o papel de Duchamp. Numa embriaguez novinha em folha e de língua expedita, patetas de uma escola oblíqua cujos fôlegos se auxiliam a fim de legendar humoristicamente cada bagatela, ambos com um fervor dionisíaco. Concedo, eis o prelúdio do fogo. Nessas alturas em que o fumo era uma mensagem de mudança, estávamos no estaleiro do vulcão.

Graças à legenda, perdoem-me o frio engano de estar a ver a cena à distância, graças à paixão, o bibelot é elevado a arte onde sorrisos e olhares conspiram, revirando-o numa ala de museu, acessível tão-são a corpos conduzidos pelo singularíssimo lume em crescendo. Por esses dias, a aventura não necessitava de um grande romancista para ser escrita. Do sorriso à cama sem parar no stop; e sem recorrer a mapas.

Em cenários contíguos, ou noutras vidas, caso os universos paralelos ressuscitem os eus abortados que fomos semeando pelas cenas ebulientes que não deram em nada, sedentos que aconteça alguma coisa, de alguém hábil em pronunciar o nosso nome ontem pouco sonoro, uma médica autodidacta que, de bata e alma aberta, reabilite o coração fechado em copas, que um beijo nos desagrilhoe desta pose que herdámos de Prometeu e conceda ao fígado um horizonte mais esperançoso. Damos, por algum tempo, folga aos abutres, águias, ou corvos, dependendo dos mitos, o amor que já foi tudo, uma vez que, qual boato, é-lhe contado as Metamorfoses de Ovídio num sem-fim de boca-a-boca.

Essa gestão de encontros apontada em cima da braguilha enfunada operava na agenda a magia da multiplicação das horas. Tão fartos de palavras e tão desesperados por acção que já só desejamos ser desfigurados pela velocidade do tesão, que a fome do outro nos cale e não permita, nem por um segundo, diluir a cena, mas sim tornar a carne feita animal numa emboscada há muito orquestrada pelo inconsciente. Entramos inteiros na vida do outro, de tal forma que nos esquecemos de pôr um gravador na memória a documentar a cena. Daqui sairão uma série de quadros abstratos, que ora nos agigantam, ora nos apequenam.

Punha sempre o meu pénis à disposição. Ficava-se com a sensação que vivíamos dentro de um refrão alegre, que os passeios duravam uma dança, que o amor era uma grande canção que nos impelia à dança, mesmo nos piores momentos. Nessa idade, não damos pelo tempo a passar.

As horas ocupadas pela conversa nunca pareciam excessivas. Nessa altura, iria de gatas até ao fim do mundo se me garantisses que estarias à minha espera. Eras responsável pelo meu mundo, eu, pelo teu. Não fosse a imaginação e não me lembraria de nada desses dias, salvo o teu olhar e o meu coração a ganhar voz à medida que me aproximava do sítio que havíamos combinado.

Mudando abruptamente de faixa, elaborando uma manobra capaz de nos pôr a rezar, finalmente, pela vida, pondo-vos frente a frente com o passado, trazendo à tona os ângulos mortos, confidencio-vos que há um ponto a partir do qual cada gesto principia, de supetão, a pesar desmesuradamente — enferrujamos a meio de uma coreografia. Nem sequer nos ocorreu fotografar nada — éramos como dois leopardos das neves. Quiçá pairasse um receio que a fotografia, ao funcionar como intromissão nesse bailado improvisado pela paixão, quebrasse o encantamento. Sem provas, íamo-nos afundando numa lenda só nossa.

Às tantas foi isso que pôs termo a tudo — um disparo. Um disparo fotográfico de um biólogo de cidade quebrou a pose animalesca de dois bichos esfaimados, entretidos até então no cadáver minguante da paixão. Hoje, com pose desajeitada, e pouco digna para figurar nas fotos, sou marioneta atirada para um canto de um palco em ruínas. Uma marioneta a lamentar a sua verticalidade perdida.

Olhando novamente para trás, começo a duvidar de tudo. Sem nada a que me agarrar, sem provas, e conhecendo o lado charlatão da memória, principio a duvidar de tudo o que escrevi nestas linhas. Nada disto aconteceu senão noutro universo.

Presentemente, recorro a esse armazém quando necessito de peças para pôr a andar um poema, uma crónica, que é como quem diz, um Frankenstein feito de letras.

 

shayan-ramesht-dmqD5k9SEA8-unsplash.jpg


Roberto Gamito

14.02.22

Quis o destino que eu sobrevivesse até este dia, dia de São Valentim, moderadamente ileso, excepto umas ligeiras tremuras entremeadas com gritinhos abafados pela almofada quando medito no amor e dificuldade em adormecer sem soltar um Nilo de tristeza para os lençóis. A minha hora há-de chegar, digo eu, diante do espelho, de modo a parecer um garoto barbudo e introspectivo com um pijama pejado de porcos de forma a condizer com o meu gabarito intelectual e não um tipo tomado pela insânia; só espero é que a hora não coincida com a da minha morte. Não seria de estranhar. Sou pouco organizado e não me espantaria que o destino me tivesse marcado o amor para a hora da morte. De facto, seria o episódio indubitavelmente mais marcante da minha vida, e o último, como se tivesse deixado o melhor para o fim. A minha inteligência e beleza exótica — leia-se desespero pausadamente — serão recompensadas. Deus não dorme; todavia, em virtude da idade, é incapaz de escutar as preces dos humanos, muito menos as minhas, que sou, segundo as palavras de Jesus, esse privilegiado, o único homem que não é filho de Deus. E como não dorme ainda piora a situação; é um mouco irritadiço. O problema dos milagres está despachado: não posso contar com eles.

Não é uma tarefa fácil, com a vontade de viver a escassear, porém como alguém tem de prosseguir com a minha vida e, considerando as ofertas no mercado, entendo que sai mais barato se eu tomar conta deste negócio tão pouco apetecível. Não faço a mínima ideia do que quero dizer com isto. Se continuo vivo, se não é uma vitória estrondosa, é pelo menos uma vitória moral. Que, traduzido na moeda corrente, é um valente nada.

A verdade é que, durante a minha vida, levei a cabo muitas experiências no domínio do fracasso amoroso. O amor, segundo a minha ideia, é dotado do poder de enviar toda a nossa vida para uma nota de rodapé, dando-nos a possibilidade mágica de rabiscar de novo o livro da nossa biografia. Por azar, não tenho qualquer génio quer para a escrita quer para o desenho. É só gatafunhos. Não me chateio; ninguém percebe muito bem o que é o amor. Aliás, este procedimento, o rabisco, é tão-só a minha forma de exprimir a minha incapacidade de o compreender.

Imagino-me a esfarelar orégãos para uma salada de tomate, um hábito que ganhei quando saio à noite, enquanto bebo um copito (saliento que o corrector ortográfico trocou-me, vezes sem conta, a palavra ‘copito’ por ‘coito’), não obstante ser considerado um hábito socialmente condenável, sou bastas vezes interpelado por um olhar que oscila entre o meigo e o esfomeado e, em resposta, confortavelmente metido numa farpela de rubor, a qual preludia a indumentária do suor, treinado para salivar diante da febra, como uma nova raça de cão de Pavlov, naquele habitat de silêncio tépido onde homem e mulher praticam ping-pong com os olhares, eis que ela diz: “A forma como tu esfarelas os orégãos enriqueceu-me incomensuravelmente a vida.” A forma de seduzir, respondo eu, confiante do meu acto exuberantemente erótico, mais eficaz que conheço, minha querida.

Descontraímo-nos com xaropadas, frases sem nexo, risos que afloravam a qualquer momento, esfrangalhando-me as piadas, a coisa que eu mais detesto na vida, logo a seguir à fome no mundo. Fiz-lhe ver que era um homem diferente, um papalvo de alto coturno, padecia de um comportamento de idiota, isso era indiscutível, porém invulgar e ela admitiu que nunca vira nada assim. No meu nervosismo, sussurrei-lhe esta salada de tomate é para ti.

Nunca ninguém me disse uma frase tão doce, retrucou, encantada. Os minutos seguintes, como é fácil de ver, abarcaram diversos assuntos, dos mais simples ou mais exigentes, desde que o leitor esteja disposto a prescindir da lógica. Penso, desde essa altura, que falei demasiado. Da salada de tomate até à amizade vão dois grãos de sal. E eu distraí-me com o q.b. Tornamo-nos amigos e eu tive de adiar, de novo, o amor. De resto, ela confessou-me que nunca me iria esquecer, pois nunca havia comido uma salada de tomate às 3 da manhã.

Dia dos Namorados

 

 


Roberto Gamito

05.02.22

Como começar a pensar pela própria cabeça? Recorrer a pessoas, estranhas e conhecidas, quartos ou quadros, folhas em branco, árvores e perfumes, penas e guilhotinas: eis algumas hipóteses.

A paixão como vereda estreita onde o discurso prolixo se despede dos seus barroquismos. Interessa-me isto: por que caminho regressamos ao estádio animal. Que itinerário escolhemos quando vamos da humanidade à animalidade? Seguimos a via da cólera ou a da fornicação? Mas antes há que responder: de que forma sai o Homem do silêncio? Tranquilo ou ofegante: eis tudo.

Tangentes da nova escola, que tocam de raspão mas alardeiam profundidade. Profetas e poetas da tangente. Nuvem de arpões mansos.

A imaginação parte de um pormenor, ingressa nele com ganas, fá-lo ganhar volume, dentes e asas e só descansa quando dele brotar um monstro. A obra do olhar, a sua actuação sobre a paisagem ou um corpo. Eis a missão da arte: fazer de um olhar, de uma rosa, de uma paisagem uma porta.

Em certos funerais, o mínimo choro pode dinamitar uma cidade. Há uma tensão à beira da explosão. Os segundos são frágeis: o mínimo choro, soluço, sílaba pode trazer ao mundo uma nova geração de carpideiras. Diante da morte, o choro metamorfoseia-se em dinamite.

Há, no eufemismo, tão caro ao século XXI, um instinto de defesa, o qual denuncia o medo da palavra. O Homem acredita ter descoberto a fórmula para diluir a noite: só precisa de continuar a falar.

No fundo, Duchamp copiou as crianças desarrumadas. Pôr o vulgar fora-de-sítio é o desporto predilecto dos catraios. Eis uma forma de nos escaparmos a reprimendas: não sou desarrumado, sou artista.

Ser artista é pôr algo num sítio imprevisto. Seja o amor numa folha antes em branco ou o urinol numa exposição. A paixão arromba-me o coração e a mente e origina uma desarrumação duchampiana. Tudo muda de sítio, tudo é retirado artisticamente do contexto. Ser artista ou amante, que neste caso vai dar ao mesmo, é testar os limites das convenções. É urgente transformarmo-nos na cousa amada.

Na margem de uma praia remota, o cachalote, vazio como um pneu furado, foi cortado aos pedaços para que as crianças e os poetas consigam transportá-lo em cantigas. A falta de compromisso com o gigante, que é como quem diz, o empobrecimento que condena os grandes voos. Actualmente, não há carapau que dê à costa e permaneça inteiro nas nossas falas. É preciso tornar o mundo mastigável. O enorme necessita de ser desmantelado de molde a não assustar os animais timidamente verticais.

Se não existe espaço para mim no palco, sou obrigado a fundar outro inferno.

O quadro habitado de personagens mudas — uma espécie de febre que cada um traduz à sua maneira. Quem exibe hoje o gosto de permanecer à espera diante de um quadro sem se envergonhar? O quadro do qual despertam socos e pontapés.

Entre um quadro e outro, o homem segreda à sua parceira: Beijo-te, hospedo a minha expedição de expectativas no teu olhar. Que ridículo, retardatário no capítulo do namoro; já ninguém se expressa assim. Quando visto de fora, o Homem é apenas um Homem. Se visto de dentro, uma guerra de pequenos demónios abafada pela verticalidade. Imagino uma exposição constituída por Homens a braços com os seus fantasmas.

A tristeza e a dor dos outros pode ser engaiolada num poema ou num quadro, já a nossa é um animal esquivo, pensa alguém diante de uma tela em branco.

Uma frase para pendurar em todas as paredes do mundo. Que frase seria? Quero que os artistas se fodam, eis um exemplo.

Ninguém está verdadeiramente perdido: se bem lido, o itinerário circular desenha no deserto o mapa do teu inconsciente.

Os versos são trajectos sérios e maravilhosamente inúteis. Surgem de sítios imprevistos, como becos ou cadafalsos, no seio das coisas caladas, e ridicularizam, por momentos, a profecia do eclipse da razão.

Com mais ou menos humanidade, há uma verdade que permanece imutável: pedir é inútil se nasceste nas coordenadas erradas. Ter o berço no sítio certo dita uma vida. O local onde se nasce: metros quadrados decisivos. Apesar do teatro humanitário, as desigualdades adaptam-se como ratos a qualquer cenário.

Após uma obra que lhe saiu do pêlo, o aedo cogita: não me posso dar ao luxo de desperdiçar mais oxigénio. Cada verso tem de dar ares de guilhotina, cada poema um barril de pólvora. Quero matar um sem-número de exegetas, quer trazer o inferno às estantes dos livros empoeirados.

Não nos precipitemos, ainda não acabei de morrer e já me estão a pedir — médicos convencionais e médicos autodidactas — que ressuscite. Calma, uma morte de cada vez.

Engaiolar o abismo é um processo viciante. E o mais difícil é fazê-lo sem sorriso de lunático, sem povoar a orla do vulcão de frases sem nexo. Deixem-me procurar a paz na orla de um vulcão em actividade. Não me policiem as órbitas: sou um asteróide indeciso e o fogo tranquiliza-me. Talvez o Homem seja, afinal, filho do Diabo. Sobra-nos isto: enfraquecer Deus ou o Diabo expandindo-os numa obra sem palavras a mais. Existir é estar preparado para ser deixado de lado. A verdade é o prémio da propaganda vencedora.

Não me vês, não finjas que não és míope. E não há nada que se possa fazer quanto a isso: não posso ser o ditador que obriga o teu olhar a seguir determinado trilho. O Eu não é partilhável através da visão.

O progresso é uma história para adultos que estão a vivenciar a sua segunda infância. A palavra dita à beira do caixão é coisa para se infiltrar numa rocha e fragmentá-la. Não sou o tipo de animal que escolhe os grandes portões mas as entradas secretas. Abandonei o perfume e as madalenas, em vez disso ponho o dinamite em circulação através das minhas palavras. O meu sonho é destruir um século inteiro. E também isto: perceber o desespero do leitor que se deu conta que está a soletrar uma explosão, camuflada num pássaro canoro.

Se vamos ser conservadores em relação aos doentes, ouvi eu na televisão. Frase do nosso tempo. Noutros tempos seria suficiente para iniciar uma guerra. Há, nesta delicadeza caquética, uma obscenidade. Ao que parece, o corpo foi retalhado em colunas de excel. Há doentes que merecem abordagens conservadoras; outros, vanguardistas. Se é para morrer nas mãos do disparate, alcunhem-me de enfermo vanguardista. Morreu de quê? Morreu a tentar ser manifestamente diferente. Até onde chega a habilidade de ocultar a barbárie no discurso? Alegam que somos sofisticados, não canibais, porém vemos o Homem fatiado em todas as parangonas.

A medo avança por aí. E podemos, é claro, ver em qualquer trajecto a demanda de um louco. Se o mundo está irremediavelmente perdido, de que nos vale sair do sítio? A vida é um peso interpretável de mil e uma maneiras. Não há balanças erradas nem certas; contudo, todos os homens têm o mesmo peso. Sem amor, a língua ficaria despovoada de intensidades. Calarmo-nos ou falarmos seria igual ao litro. A vida é o sítio onde o erro começa e acaba, um grito que cavalgamos a horas certas ou a desoras, sem final definido, pese embora a morte nos desminta.

Escrever é sujar lucidamente a folha. Invadi-la com uma miríade de fantasmas e aves de mau agouro. Fica de noite, portanto.

Tenho precipícios nos pés, mas ainda não aprendi a cair. Naquele rosto já não há nada que nos faça sonhar, comenta uma personagem de um romance. É liquidá-lo antes que ponha em dúvida a nossa bateria de certezas, riposta uma pessoa de carne e osso. Corrijo: tenho princípios nos pés, eis o que penso noutros dias mais luminosos. Mas entretanto o punhal já iniciou o seu trabalho nas minhas tripas.

O poeta é impróprio para consumo, resta-nos atirá-lo ao lixo, amachucá-lo sem dó nem piedade. Pode ser que a sua agonia seja capaz de nos educar. Ainda não há canhenhos da barbárie suficientemente explícitos que permitam ao Homem ver-se ao espelho. Daí as dúvidas, daí as escolas do delírio. Em todas as coisas há uma semente de ópio. Dou-vos autorização para me despertarem do torpor se souberem do paradeiro do paraíso.

Se nos tornamos iguais, o Homem torna-se paisagem. Forçamos ligações, forçamos sinónimos, forçamos abraços. A diplomacia afasta-nos da verdade: não há duas palavras iguais.

A amizade é baixar a guarda, confessar a localização da vera porta pela qual o outro ingressará em nós. O parecer colonizou a maioria dos verbos: as portas são hoje fictícias — daí as cabeçadas, quais pardais nos vidros.

O estar parado é desaconselhado. Faltará pouco para se abaterem os homens-estátua. Estar parado é incompatível com a Sociedade das Febres. O ser humano usa uma parafernália de recursos para adiar a catástrofe do silêncio. A paixão — ouvi dizer, não confirmo nem desminto, dado que sou filho deste século — ou a sua ausência faz com que o silêncio possa ser por vezes magnífico e outras vezes hediondo. Não estamos todos no mesmo sítio — como se apregoa ingenuamente. Felizmente, o início é coisa do passado. Minto, o tempo ainda não tinha sido inventado.

Sem a noção de espaço, não havia nada, não haveria prateleiras para pôr tanta mentira. Não poderia haver artistas nem público, nem Duchamp nem detractores de Duchamp, nem casa nem mundo selvagem. Cuidado com o que desejam, pode sair-vos caro.

Que Deus nunca ouça a prece dos ingénuos. Ninguém é educado para ver nas setas pássaros em queda, a não ser o bárbaro com inclinações poéticas, mais raro que deuses, que vê na sua morte uma oportunidade para sorrir.

Catálogo de movimentos

 


Roberto Gamito

07.11.21

Durante muito tempo, virei costas ao oceano da angústia. Só muito mais tarde, após as rugas conquistarem o meu rosto sem que daí resultasse qualquer oposição, esgotadas as rotas e trajectórias, eu que fui célere e letal qual projéctil e lento e paciente qual monge do deserto, descobri a verdade: não era senão uma ilha. Preferia não ter de me cartografar nem inventariar os bichos que me escolheram como habitat.
Destino ou livre-arbítrio são legendas possíveis, porém o quadro não deixa margem para dúvidas. Há um homem no leme, todavia o homem é cego. Assim sendo, o livre-arbítrio é uma paródia sem fôlego do destino.
Sou partidário da ideia de Nietzsche, apesar de tudo, esse magro tudo, urge dançar. É na orla entre a possibilidade e o nada que o mundo se faz. Eis-nos chegados ao país da espera, onde os Homens nascem ou definham. O limiar é, pois, uma máquina de fabricar ou exterminar gigantes.

A angústia é uma luz intermitente, como se fosse um animal que passasse o tempo nos meandros da carne, no nosso corpo, pronto a saltar cá para fora, aproveitando o deslize de um lapso, um gaguejar, um qualquer engarrafamento de temperaturas na língua, bastando para tal que enfrentemos desarmados o nosso reflexo. Com efeito, o nosso reflexo é uma espécie de veneno que se infiltra paulatinamente nas nossas congeminações, um vândalo em crescendo prestes a incendiar as nossas vulneráveis convicções. Basta para isso que nos demoremos diante do espelho.
Se indefesos e sem máscara apta a nos proteger da verdade, o reflexo faz-nos embarcar e navegar nas águas profundas das possibilidades, nas quais passado, presente e futuro se interpenetram tempestuosamente.

A odisseia de Ulisses e o labor de Penélope levam os neurónios à ebulição. A memória que faz e desfaz como Penélope, sabe-se lá à espera do quê ou de quem — Ulisses e a Morte entre os candidatos —, e revela a verdadeira identidade do chão sólido: areias movediças, parentes menos poéticas dos grãos de areia da ampulheta. Nos territórios da memória, situados em coordenadas incertas onde o mar é mais revolto, estamos sozinhos. Quando muito, vemos os outros seguirem-nos nas margens, primeiro como seres humanos, de seguida como vultos, depois nomes, e por fim como sílabas insípidas de um tesouro há muito perdido e indizível. A memória é um labirinto fluído, os demais permanecem na nossa vida como histórias ou como migalhas, à semelhança de Hansel e Gretel. Porém os dois corvos de Ódin, o pensamento e a memória, não nos facilitarão o regresso.

Estamos condenados e o verniz da sanidade ameaça estalar. Amiúde gosto de imaginar a figura de Teseu a dançar no centro do labirinto com a cabeça do Minotauro. Uma vitória magra, suficiente para nos alimentar o ego durante algumas horas. E depois?

Ambicionamos duas coisas: estar à altura da nossa idade e estar satisfeitos com o passado quando chegados à antecâmara da morte. No pino da empáfia, tentamos criogenizar algumas das possibilidades, a maioria engendradas pelos sonhos, elas que, se não lhes cortarem as pernas, podem ser as sementes do melhor mundo possível; entrementes, resgatamo-los, aos sonhos, para um futuro onde, pensamos nós, seremos mais capazes. Ao longo dos anos, o cadáver da vida sonhada mantém-se conservado num caldo de promessas, porém, aos poucos, a mente dá uma guinada rumo a um estágio infernal e, sem darmos conta, consumimos esses ocupantes criogenados. O sonho transforma-se em ração destinada à cólera ou à depressão.

Sobre todos os cumes da dúvida paira, ainda sem rosto, a possibilidade de recompensa. Por conseguinte, andamos aos círculos atiçando a oportunidade de salvação. De cima, os abutres repetem passo a passo a nossa jornada repetitiva, como se escarnecessem da nossa demanda.

Atena é a deusa da sabedoria e da fiação. Sabedoria, fazer e desfazer, eis a memória decomposta em partes mais simples e eis outro modo de retratar Penélope trocando o pincel pela pena. Para cá é para lá, para a frente e para trás, qual barco embalado pelas ondas, um pêndulo ou um baloiço à beira do abismo, um ritual cujo fito é afastar o depois amargo, que é como quem diz, a morte.

Ontem amavam-se e hoje encontram-se num estado de inércia fatalista.

Volvidos alguns capítulos desse romance narrado pelo vento, os dois conversam numa esplanada de um café de toldo carcomido, é trocado um punhadinho de frases feitas onde ontem a paixão ensaiava poesia. É notório que ambos buscam no olhar do outro a ponta solta desse amor que se lhes escapuliu. O mundo goza de uma pausa quando, apenas temporariamente, duas pessoas tentam enlaçar as suas biografias sensaboronas num apetitoso romance de grande fôlego.

Sem que nada o fizesse prever, a década tornara-se numa sala de espera onde animais e homens se acotovelam à espera de uma metamorfose capaz de lhes conferir asas. Eis a promessa do amor: a Metamorfose. Ansiamos despertar do casulo do amor outra criatura, um animal sem grilhões.

A que espécie de hibernação se sujeitam os homens contemporâneos para que deixem fugir o amor durante décadas? Não respondam, mergulhem antes nesse silêncio, ó meus apneístas nocturnos.
Possivelmente, a ideia de ressurreição de Cristo foi a derrocada do amor. A noção de que algo pode esperar — e o mundo contemporâneo é feito de sucessivos adiamentos com vista a uma promessa futura colossal (um paraíso posto nas prateleiras a preço de saldo) — sem sofrer os danos e a erosão das garras do tempo. Em boa verdade, somos confrontados com a acerba realidade: não conseguimos trazer a vida à tona da morte, as sucessivas exumações inúteis levadas a cabo pela memória só alimentou a dor a horas certas e, finalmente, o reconhecimento de que, após uma longa espera, o mais que logramos resgatar das cinzas é o belo mas putrefacto cadáver do amor.

Entre a morte e o amor, o homem só tem duas escapatórias: definha ou cresce. Nesse sermão levado a cabo pelas sombras canoras, também os nossos mortos nos tentam ludibriar — já não bastava o Diabo. No particular do artista, a folha em branco é o ponto de encontro com os nossos mortos, vivos, mundos teóricos e projectos de metamorfose. Embora inútil, o artista não desiste da possibilidade de inventar uma fórmula que faça as vezes do amor. Vivemos empacotados na dúvida de que nunca seremos suficientemente bons para cantar a altura posta em queda que nos devorou as asas. Todavia é preciso continuar a dançar.
Num mundo sem heróis, só os amantes desafiam as proibições e os algozes. Extintos os fogos do amor, o homem foge da transgressão rumo a províncias maquinais. Não é por aqui que me tenciono perder.

Campeões da lamúria, apressados e hesitantes, carambolando entre não ter tempo a perder e o medo de escolher mal, o homem crê ver a Medusa no reflexo e paralisa.

Em face deste jardim de estátuas, devemos ser capazes de manter a dança, o coração e a cabeça, combater a compulsão para a aceleração, esquivarmo-nos das massas e encetar coreografias de autor.

Antes que o tempo nos despache como incapazes, encaremos a vida — o labirinto em expansão — como uma pista de dança apinhada de aves de mau agoiro.

Sopé dos últimos dias, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

08.06.21

Tertúlia de Mentirosos com Marine Antunes.

tertulia_de_mentirosos_cover_marine_antunes.png

 

Deambulámos por uma enormidade de temas, a saber: paixão e amor, mau feitio, treinar o elogio, o cancro ensina-nos alguma coisa?, cancro com Humor, novos projectos, abraçar novas experiências, o falhanço. 

Podem ouvir o episódio aqui ou noutra plataforma de podcast.

 


Roberto Gamito

28.01.21

E se agora, na desordem da minha mente, ao contemplar de forma animal uma mulher, me metamorfoseasse em poeta? De costas voltadas para a minha biografia, dou comigo a afirmar: Não há mulher, não há animalidade na visão — mas já houve, os livros não me deixam mentir —, não há nada — apenas uma selvajaria postiça ao sabor da respiração, melhor dizendo, uma embriaguez vazia, sem pés nem cabeça à qual o temor e tremor, a morte e a vida, os limites da mão, fazem as vezes das musas, hoje cadáveres destroçados. Viro os meus pesadelos uns contra os outros e assisto, de olhos fechados, à matança.

O coração nunca é uma casa, é um estaleiro naval onde a memória coordena as entradas e saídas dos nomes.
Nesse lugar de chegadas e partidas, assolado pelas mais altas fantasias, que é como quem diz, no limiar da razão, aquele que reflecte no porquê da respiração acelerada descobre que já não há futuro. Trânsito de navios-fantasma, fora os nomes que à época eram prementes e se afogaram no esquecimento entretanto.

A paixão abre à minha frente um cadafalso que me atrai e é familiar. Preparo-me para a morte como das outras vezes: coração nas mãos, cabeça no cepo.

O artista é aquele que espera enquanto foge. É um simulacro de pensamento, típico deste século a cair aos bocados.
Como escreveu Georges Bataille, é necessário ter coragem e teimosia para não perder o fôlego.
Sem ar nem vida
cheguei ao teu corpo
noutra língua.

Em sucedendo, mesmo que seja pela via da imaginação, o gemido enfatizador dessa fantasia pode, se alcançado o cume da liberdade, ser o prelúdio de uma obra capaz de vergar estantes.
A simpatia polivalente no mundo dito real (a indignação nas catacumbas) põe certamente em evidência a nossa impotência em nos transcendermos. Olhamos à volta, como um animal apático após matar o rival, sem que nada nos desperte o interesse. Abandonamos o cadáver pondo para trás das costas o acto que lhe deu origem.

Fora da esfera da carnificina, regresso à arena onde as palavras que não disse me mordem e esbofeteiam e cabeceiam. Afinando o quadro para o espectador míope, posso dizer-vos que sou o homem nu ao redor do qual as palavras que fui incapaz de dizer na altura certa — palavras mágicas? — cospem em coreografias de humilhação o meu fado. Os livros, uma vez que se devoram uns aos outros, são de espécies diferentes, de forças distintas. O mesmo sucede com os dias. Há dias capazes de me engolir de supetão, enquanto outros se contentam com carícias.

Não existe, do Homem feliz àquele que é devorado por ideias suicidas, uma relação sincera com o mundo. Inevitavelmente, aos olhos de um sábio, somos crianças embeiçadas por paraísos artificiais, os quais, a cada ano, são aperfeiçoados para que não nos apercebamos da patranha da miragem. De pé ou de joelhos, o Homem, esse simulacro de Atlas, deve recusar-se a ser visto como uma coisa. Nem que dê a vida por isso.

 

Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

27.12.20

Coração, morada das mais obsoletas tangas. Sem pinga de receio, o homem imaculadamente bêbado profetiza a rixa que há-de vassourar mesas e cadeiras da esplanada, dispondo-as como que artisticamente no passeio. A conversa cresce em mal-entendidos. Na orla da futura escaramuça, homem e mulher negoceiam intenções quanto à guerra que se irá travar logo à noite numa província isolada.

O velho, que por vezes sobrevive às transações entre a luz e a sombra, chamava o polícia de Zé da Boina.

Alfabetiza-se a carne quando a palavra é aquecida pelo lume do tesão. Procurar o gemido mais eufónico de modo a afinar o coração.

Quando pequeno, entrava no mar para escaramuçar com o oceano. Mergulhava de cansaço minutos depois, como se ensaiasse a sua própria morte.

Animais sem nome de apetite ecléctico. Uma frase antiga roída da crítica. Compete-nos pôr cobro aos incómodos, suavizá-los numa prosa de enamorado, não denegrir cumes nem enaltecer sopés, linguarejar com uma postura de quem veio para ficar.

Homem magnificado pela paixão, logo bestificado pela separação. No delta da apoquentação, poesia, suicídios e uma maré de hieróglifos.

O Homem despenha-se na sua própria vida, uma queda aperfeiçoada dia após dia, não devendo nada ao falcão.

Somatório Roberto Gamito

 

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D

subscrever feeds

Sigam-me

Partilhem o blog