Roberto Gamito
01.03.21
O ofício deste escriba de miolo raquítico consiste em peneirar as imensas quantidades de ideias desfeitas, episódios intermitentemente alegres, receitas exóticas de bacalhau e empratar jeitosamente na crónica algo que vos espicace o apetite. Todavia hoje padeço de um dos maiores problemas do Homem contemporâneo: falta de tempo. Pior, será cada vez mais difícil, talvez impossível, abstermo-nos de contribuir — eu incluído — com insultos à medida que o texto se desenrola.
Em todo o caso, sinto-me inferior à droga. Ao contrário de certas experiências de voo alucinogénico, hoje serei incapaz de arrombar as portas da percepção e piscar o olho a Aldous Huxley, como se eu e ele, um par de pitosgas, fôssemos parceiros na sueca.
A falta de tempo — mas também poderia referir-me à escassez de talento — são incompatíveis não só com uma crónica genial, daquelas que nos entram na cabeça para nunca mais nos abandonarem, mas com a própria possibilidade de mantermos a esperança num mundo melhor, a qual depende de um reservatório de pequenas apostas, as quais esfumar-se-ão face a um caso tão excepcionalmente perdido como eu.
Abeiro-me do texto ou da crónica ou lá como isso se chama, resmungam vocês, a fim de procurar refúgio das nossas vidas destituídas de folia, cedendo atenção para vistoriar nas letras alheias alguma espécie de banquete destinado à alma, e tu, Roberto, desgraçado fazedor de linhas, apresentas-nos esta lástima, sem pés nem cabeça. E com um tronco pouco digno de figurar numa foto de Instagram.
Não fujo à realidade, obrigo-vos, em última instância, ao desenvolvimento das vossas ideias mais deprimentes, as quais, antes paradas por falta de peças, receberam o incentivo certo para serem arranjadas e postas em prática.
A minha falta de tempo desafiou o vosso direito elementar a um futuro, que consiste, para citar Shoshana Zuboff, agirmos livres da influência das forças ilegítimas que tentam influenciar e modificar e condicionar o nosso comportamento além do alcance e da nossa consciência. Peço desculpa, esta crónica miserável modificou a vossa vida para sempre.