Roberto Gamito
03.04.22
Cautela, não tropeces no Diabo — erguer-te-ias com outro nome.
Viagem à volta da estranheza que somos, ilha habitada de animais mutantes e queira deus carnívoros. A procura frustada do semelhante fez da luz um buraco negro. De inocente a bárbaro num estalar de dedos: não chamem a isto magia, mas História. Desmantelamos o circo até ao átomo, vendemo-lo por peças a preços absurdos. Nada se ganha, nada se perde, tudo se torna risível. Nada é verdadeiramente, não te equivoques, passa de uma mão para outra: tu és aquilo que não consegues capturar.
Nem demasiado frio, nem demasiado quente; não serás o último nem o primeiro; serás os muitos gritos de uma história qualquer abafada num quarto esconso em vias de ruir. Baptizamos os vultos resgatados pela memória como quem descobre novas espécies de animais. Enchemos o coração-arca de bichos, onde ontem havia silêncio há hoje deserto, florestas e oceanos pejados de feras famintas. O nome da amada afinal é um nome entre muitos nomes — que triste princípio de poema.
Talvez se me aproximar de mãos nuas consigas — ou desejes! — habitar-me o olhar. Também ouço falar que a luz muda de nome a cada cem anos em sítios onde só conheci a noite.
Talvez tudo não passe de uma esparrela, engodo para um ego inchado e por conseguinte frágil face a um mundo a abarrotar de espinhos. Escapar aqui não é fugir, frisa o poeta, é o primeiro tijolo da metáfora. O público desconfia com as mãos nos bolsos.
Fala, cala-te, fala novamente e cala-te, para que não te caiam em cima e te desequilibres do fio alto da vida e te despenhes sem aplausos cá em baixo, terra onde os alheados ensaiam o inferno.
Olhas para um muro, olha um muro, murmura alguém ao teu lado, e de supetão o muro perde o carácter de metáfora, apenas um muro que, se intransponível, nos faz recordar o seu antigo sentido figurado. Descobres que não há muros nem pontes. Os séculos pretéritos sobem pelas tripas, jogas a mão à boca, inocente, julgas impedir o caudal do passado. O passado estorvará sempre o presente.
A ausência de amor é uma comédia ou uma tragédia? O homem só vence a melancolia de três formas: pela arte, pela imaginação e pelo amor. Se a imaginação ficou lá para trás, na infância, se o amor é impossível e a arte dá mostras de não dar conta do recado, o que nos sobra?
A mão-flecha-luz-quase sobrevoa, alheada das linhagens, o cadáver de Deus. Imagino-me a dançar no interior putrefacto de Moby Dick. Este é um tempo em que as sombras são disputadas por um sem-número de cães, sem luz capaz de impor limites. Chamam a isto vida, embora me pareça que fomos vomitados pelo nada neste século. É sempre a mesma merda: os homens entediam-se sem arte, as moscas deliram e os camaleões oportunistas fazem planos para o futuro.
Após auscultar o coração do paciente, o médico questiona o desgraçado: “Há quanto tempo não lê um poema?” Poema, riposta o homem sem qualidades, há tanto tempo que não ouvia essa palavra.
A paixão é a cana de pesca que resgata o nome do rio do ruído. Gota a gota o dilúvio ou o dragão. Fechado numa câmara anecoica com um relógio, o tiquetaque funde-se no sangue que o silêncio tornou mar. O interior vem à tona revoltado. Se o interior contar a história da carne de uma ponta à outra, enlouquecemos.
Ontem remexia, junto da lareira, ao rés dos velhos corcundas, hoje pasto de vermes, os toros com uma tenaz. Os andaimes que rodeavam o futuro foram retirados e demo-nos conta do ludíbrio: não construímos nada durante este tempo todo.