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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

21.10.21

A pastelaria oferece-nos um lote bastante farto de seres humanos. Há uma miríade de velhotas, pequenitos animais encaracolados pelo reumatismo, desde as galhofeiras, as perdigueiras da marotice aptas a desencantar nabos das frases mais insípidas, passando pelas escancaradamente atiradiças, as curiosas como crianças, as quais não descansam enquanto não perguntarem o nome de todos os bolos, apesar de comerem sempre o mesmo, típico deste animal cujos hábitos são leis divinas, até mesmo velhas rezingonas e aspirantes a carpideiras cujo ofício é ensaiar o fadinho quando a alegria vai à casa de banho, enfim, animais hospitaleiros no tocante à tragédia. Acrescente-se casais quedos e calados, quiçá um par de homens-estátua reformado a recordar os bons velhos tempos. Tal cena põe-me alerta para algo que o Homem enquanto parte integrante de um casal descura: devemos falar apenas o necessário sob pena de esgotarmos as palavras. O diálogo deve ser racionado como ração no pino da guerra.

Calma, ainda não acabei de pintar o quadro. Há os velhos bêbedos que saltam de cadela em cadela com a agilidade de ginasta asiático, o velho que confunde sapatarias com pastelarias, a velho surdo que vê em cada palavra semiouvida uma oportunidade de trocadilho, o velho cuja religião é a mini e a bifana às 8 da matina e por aí vai. Apontemos os nossos humildes holofotes para o velhote ébrio. É comum vê-lo indignar-se: os jovens hoje em dia estão sempre agarrados ao telemóvel, exclama ele agarrado à sua fiel cerveja. Mas as coisas não se encaminham só por si, para sermos francos, é necessário suplicar aos neurónios horas extra a troco de migalhas de esferovite, que é como quem diz, coisa nenhuma.

Ater-me ao lote de personagens anteriormente descrito é insuficiente para apodar o texto de crónica. É em momentos como estes em que os minutos viram séculos e o pensamento tenta criar ligações onde nunca houve pontes. Passando em revista o cardápio de personagens, equaciono qual deles me sairá na rifa num futuro próximo. Dito de outro modo, se a vida é um filme, qual destes personagens será o meu papel daqui a uns anos, quando o cabelo branco conquistar por completo a minha cabeça?

Oscar Wilde, um pândego de cu travesso a quem deu para escrever coisas engraçadas, apontaria algo desconcertante e memorável sobre estas questiúnculas que ocupam o meu miolo enfezado.

Eis-me biólogo versado em faunas de pastelaria. Eis a velha com os olhos a fagulhar diante dos bolos. Se querem ver uma velha feliz, atirem-lhe bolos. Se querem ver uma velha infeliz, digam-lhe que o seu bolo predilecto acabou.
Não há muito tempo vi uma velhota envelhecer vinte anos após saber que o último pastel de nata havia sido vendido há cinco minutos. A cena puxou-me para terrenos literários. Recordei-me do célebre trecho de Ricardo III, peça de William Shakespeare:
“Um cavalo! Um cavalo! A minha coroa por um cavalo!” Sendo que, neste caso, seria “Um pastel de nata! Um pastel de nata! A minha coroa (aliás, a minha permanente) por um pastel de nata!” Riam-se, mas não olhem para os preços praticados, caso contrário darão conta que a inflação esvaziou a hipérbole.

A ausência do pitéu adocicado — e falamos nós de humanidade e empatia! — traumatiza a velha a ponto de a pôr a chorar, episódio que a velha carpideira não vê com bons olhos — detesta concorrência. Não é fácil viver a velhice sem bolos — coitadinhas das que padecem de diabetes.

Biólogo de velhas

 

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