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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

10.12.21

É aceitável dizer-se: consigo ouvir os meus pensamentos, todavia são-me parcialmente inacessíveis. Sou incapaz de os traduzir, de os trazer para o mundo das palavras, porque não sou fluente na sua língua.
Há a possibilidade de os traduzir, porém não é isento de perigos. A minha ocupação, diríamos, é desfigurar o menos possível os meus pensamentos — operação delicada, acrescentaríamos.

Domino-me interiormente quanto mais hábil for a traduzir o mundo interior numa língua ao alcance de todos. Em redor deste ponto, surge a imaginação. Trata-se, com efeito, de formular aqui alguns passos extra. Não contente com a coreografia do pensamento, a imaginação tenta o salto imprevisto.

Dentro de nós, o tigre rodeando pilhas de cabeças de deuses antigos, árvores onde as folhas foram substituídas por penas, insectos do tamanho de galinhas, algumas leis da física suspensas. Cá fora, o homem a olhar, pensa-se, para o vazio.
O conflito entre o mundo exterior e o mundo interior é notório.

Cada migalha é a semente de um mundo ulterior. Não há terrenos estéreis quando a imaginação se apossa deles, o que há é Homens apressados. Do pormenor nasce o gigante.

Estamos vivos ou mortos?, eis o que preocupa o Homem mais desocupado. E se estivermos vivos e mortos ao mesmo tempo? Pegando com pinças na frase de Rilke, “Antigamente sabia-se(…) que se trazia a morte dentro de si; como o fruto o caroço.”
Assim sendo, o Homem não passa de um ataúde nómada, que procura avidamente o melhor sítio para depositar o caroço. Ninguém foge à morte, Ela, ao contrário de Deus, está dentro de nós. A morte é a possibilidade de um recomeço.

Relaciono-me melhor com o mundo quanto mais competente for a aprofundar a minha relação com a morte.
Não me ocupo de mim, diria o homem sem ego, ocupo-me da minha morte. A vida enquanto um ritual funéreo, excessivamente barroco, diga-se. O discurso humano como uma longa perífrase para diluir a morte.

Regressemos mais lúcidos à imaginação. Sei ver, mas também sei viajar a partir do que vejo. Começo nas letras e acabo na carne, diria o poeta a um palmo dos lábios da sua amada.

 

Morte e Imaginação, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

09.12.21

No riso, a dor desaparece. No fundo, o humorista aproveita a surpresa para se enfarpelar de médico e prescreve uma breve ficção apinhada de solavancos. A criação de uma situação cómica como meio terapêutico. Após este ritual, podemos retomar os nossos afazeres de Homem esfarrapado, isto é, permanecer vegetando numa viciante dependência de entretenimento e outras formas de ópio.

Sofro, logo existo, eis a marca do Homem contemporâneo. A dor é a prova de que estamos vivos. Não é uma dor qualquer, é a nossa.
Quais Napoleões tardios, surgem os açambarcadores das dores alheias.  Mais dor, mais dor!
Se adoptássemos a ideia de que o sofrimento é o melhor professor, estaríamos diante dos alunos mais empenhados.
No entanto, a dor, que amiúde torna homens verdes em homens precocemente maduros, tem o condão de obstaculizar o pensamento.
A dor é a legenda do corpo. Cinicamente falando, na dor o homem é livre: ninguém me pode impedir de sofrer, eis um raciocínio de um ser desocupado.

A dor suspende o pensamento. Na dor, o outro desaparece. As palavras afiguram-se rombas, são incapazes de descrever a dor. O grito enquanto dialecto do corpo, dos ossos e da carne. Só o lado animalesco — o grito — é capaz de dizer a verdade. O grito enquanto poesia intraduzível.

 

Grito, Dor e pensamento, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

08.12.21

O Homem é um animal escandalosamente mentiroso. Este raciocínio, perfeitamente defensável — tal como, aliás, o seu contrário — pode terminar num pensamento em relação à fragilidade da palavra. Não obstante o esforço do ser humano, a verdade foge-lhe sempre entre os dedos. Todavia não nos precipitemos a inocentar o Homem, caso contrário teríamos de fechar os tribunais e mandar muito martelinho para o desemprego.

O poeta, se quer merecer o seu nome, deve, em primeiro lugar, perder o pé antes de cantar. O intérprete, seja ele engravatado ou um arúspice, que é como quem diz, uma espécie de sacerdote cujo labor é ler o futuro nas entranhas dos outros, labuta no sentido de iluminar o que a dúvida obscureceu. Em todo o caso, por cada feixe de luz há uma ninhada de sombras que nasce. Se o arúspice é um embusteiro, é questão que não nos compete solucionar, seja como for, ao menos faz um óptimo trabalho ao massajar as miudezas.

A felicidade é a ficção ao alcance de literatos e analfabetos.
Actualmente, em virtude de o Homem não suportar o eclipse, existe a obrigação de conservar o sorriso o maior tempo possível. A simpatia é um exercício de resistência — esboçar o sorriso enquanto o mundo interior é dominado por vândalos.
Ninguém, a não ser os médicos, quer ouvir as crónicas das guerras interiores.

A felicidade é algo incapturável e efémera, qual ave feita de espuma. Em certos momentos-limite (a nossa era está prenhe deles, uns reais, outros ficcionados), guerras, pandemias e picos de desigualdade económica — ser feliz é quase rebelar-se contra a atmosfera colectiva. Só não é punível com pena de prisão porque ainda não é mensurável. No dia em que se inventar a ciência da felicidade, aparelhos para a medir, cientistas tristonhos empenhados a criar a felicidade do zero, o Homem será multado ou preso se for além da felicidade permitida. Num mundo cada vez mais almofadado, a felicidade transforma-se em veneno. O corpo assustadiço é incapaz de conviver com a felicidade do Outro — esse bicho estranho em virtude da felicidade.

A polícia manda-nos encostar o carro.
Polícia da felicidade: Boa noite.
Pessoa feliz: Muito boa noite.
Polícia da felicidade: Ui, vejo que temos um caso grave. Não se importa de responder a um inquérito?
Pessoa feliz: Disponibilizo-me sem entraves, adoro preencher inquéritos.
Polícia da felicidade: O caso é mais grave do que eu pensava. Amigo, você não está capaz de viver em sociedade.
Pessoa feliz: É por causa da minha poupa?
Polícia da felicidade: Não, a poupa está no limite, mas passa, mas a sua felicidade não está condizente com o ego colectivo. Então o mundo está como está, a esfarelar-se todo, são guerras, é a pandemia, são as desigualdades económicas, as alterações climáticas, a extinção dos sapos e você aparece-me com um sorriso desses? Estou em condições de o pôr na choldra.
Pessoa feliz: Não faça isso, tenho filhos para criar e canários para alimentar.
Polícia da felicidade: Então prometa-me que ao sair daqui vai para a taberna tecer comentários azedos sobre os nossos políticos, rematando cada frase com “isto assim não pode continuar!”
Pessoa feliz: Não minto, não vai ser fácil, mas pelos meus filhos abdico de ser feliz.
Polícia da felicidade: Pode ir, mostrou-se arrependido, que isto sirva de exemplo.

Em jeito de achega final, a felicidade pode ser entendida como uma incompatibilidade entre os nossos interesses e os dos outros. Dentro desta linha, aconselho a infelicidade a quem deseja permanecer camuflado e sem problemas na sociedade.

Pensar, bárbaro costume que põe o homem em sarilhos é a coisa mais debilitante e nociva, causa doenças e confere-nos rótulos amesquinhadores, isto é, a forma mais rápida de nos expulsarem da festa dos nossos dias. Estamos aqui à beira de uma proposta, em tom satírico, daquilo que podemos designar como venenos: pensamento e felicidade.

O Homem deixou de pensar e curou-se, eis o que dirão os médicos do futuro. Em caso de doença, a verdade surge como um punhal. Jaspers disse algo como “o médico só tem o direito de dizer a verdade se o paciente aguentar”. Ora, presentemente, vivemos numa altura em que ninguém sabe lidar com a verdade. Assim sendo, de que vale saber a verdade se não a podemos contar a ninguém. Desconfio que a medicina transformar-se-á num workshop de um fim-de-semana. Não há necessidade de acertar, de dizer a verdade, só interessa manter a mentira viva.

Regressemos à palavra. A palavra afasta o Homem da verdade; quanto mais agarrado ao seu estatuto enobrecedor, mais mentiroso é o Homem. Não obstante conseguirmos ludibriar o outro com discursos envernizados, há habitantes do nosso corpo que nos desmascaram, a saber: sangue, fezes e urina.

Face a esta inquietante verdade, fica difícil contra-argumentar os artistas contemporâneos que vêem na merda a sua matéria-prima. Ao contrário da palavra, a urina e as fezes são mensageiros incorruptíveis da verdade.

A análise à urina oferta-nos uma espécie de relatório do mundo interior do Homem. O interior é decomposto em substâncias e números. A urina é péssima amiga, não saber guardar segredos. Enchemos o bandulho, cometemos loucuras no campeonato gastronómico, seja doces, seja fritos, e ela desmascara-nos, contrariando a nossa ladainha: “Não, senhor doutor, eu não comi fritos, eu é mais brócolos e favas.”

Mija neste boião e dir-te-ei quem és.

Felicidade, palavra, Roberto Gamito

 

 


Roberto Gamito

06.12.21

A velocidade adultera tudo. Dá-nos a percepção errada do tamanho, mescla cores e divisórias, alucina-nos com visões de grandeza. A ideia reconfortante de ir de um sítio A para um sítio B num período gradualmente mais pequeno. Se ilimitada, o caminho enquanto montra de pontas soltas é ridicularizado. O tempo torna-se incapaz de separar o sítio A do sítio B.
A simultaneidade de todas as coisas — eis-nos doravante a habitar a cabeça de Deus.

Nascemos entre dois tiros de partida. Curar-nos-emos da nossa faceta de atleta na condição de permanecermos quietos. Horizontalmente quedos. Em todo o caso, a imobilidade não é sinónimo de avanço. Urge encontrar a velocidade ideal para gerar pensamentos. Teoricamente, cada ser humano terá a sua.

Fazer uma listagem de movimentos, movimentos exteriores e movimentos da mente. Que ligações há entre os dois? Inventariar as danças exteriores e as danças da mente. Equacionar um salão de bailes onde as pessoas ensinam outras a pensar. Locais onde o ser humano pudesse comprar novos passos.

Pensamento engessado não é pensamento. Curar-nos-emos do óbvio na condição de nos afastarmos da multidão. À nossa frente, surge-nos a montanha. Se lhe queremos dinamitar a altura, basta devorá-la. Abandonar o arsenal de pensamentos úteis, à mão de todos, do qual nos devemos afastar e entregarmo-nos a experiências inéditas.

Do salão de bailes que é a tua mente, vê se escolhes o teu par — a ideia — mais importante, que é como quem diz, que dê mostras de querer dançar até de madrugada. Evitarás assim o ridículo de chorar quando, ao perguntares: “dar-me-ia a honra de uma dança?” o eco te responder um valente “não!”

Pensamento e Saão de Bailes

 


Roberto Gamito

01.12.21

Virás do céu profundo ou surges do abismo,
Beleza?!
O teu olhar, infernal e divino,
Gera confusamente o crime e o heroísmo,
E podemos, por isso, comparar-te ao vinho.

O poema de Baudelaire elucida-nos quanto à beleza, é simultaneamente paradisíaca e infernal. Embriaga e é fluída como o vinho. Em linguajar de taberneiro, a beleza foi e será pau para toda a obra, seja na filosofia, seja na poesia. Tanto agarrou o papel de norte como de demónio a ser exorcizado.
A relação homem-beleza é suficiente para medir a pulsação do século, oferece-nos um belo retrato da nossa ingenuidade, da nossa descrença, clarifica a nossa relação com as coisas terrenas e aéreas.

A beleza é ponte e engodo. Façamos uma pequena paragem, mas não nos deviemos do assunto central da crónica.

A beleza é uma província onde tudo é outra coisa. Estranhíssimo, não é? A beleza tem o condão de fuzilar o raciocínio, recordem-se, por exemplo, da última vez em que se apaixonaram. A beleza convida o Homem a entrar nos seus domínios, porém o cinismo fica amiúde à porta. Se unida à paixão e ao desejo, a beleza atordoa-nos num misto de caos e ordem, obriga o poeta a novas combinações na língua e na mão, força-o a escolher caminhos antes empoeirados, dados como extintos, e dá nova vida ao mundo. O olhar desdobra-se graças à beleza.

Para citar Gonçalo M. Tavares, a fealdade argumentativa não convence: feio é o que não me convence, belo é o que me arrebata, o que me conquista. Os perigos da grandiloquência espreitam a cada esquina do discurso. A beleza é a mais eficaz das esparrelas.
Dito de outra forma, o belo é um engodo para observadores, o feio, um repelente.

Facilmente somos convencidos a aderir num clube se convidados pela beleza, ao contrário do feio, do qual queremos distância.
Nietzsche alerta o homem contemporâneo, o qual está embeiçado pela beleza pirotécnica, soar bem e pensar bem não são sinónimos. Focarmo-nos na beleza e descurarmos a fealdade é ser míope.

Mas por que raio queremos estreitar laços com a beleza e afastarmo-nos da fealdade? A fealdade dá-nos uma imagem da decadência, de finitude, põe em discurso debilmente cantado a nossa morte, ao passo que a beleza é uma ilha prenhe de possibilidades.

A beleza, afiançam-nos poetas e escritores, é uma espécie de luz. Os mais belos são os predilectos da luz. Grosso modo, o belo são as sobras de Deus. Ao aproximarmo-nos perigosamente do belo, corremos o risco de cegar. A emoção é um perto de mais.
Como Lhansol escreveu “chorar em vez de ver”. Chorar interfere na visão. Perto de mais é deixar de ver, eis um dos perigos da beleza. Porém o feio não é isento de perigos. Numa manobra oposta à da beleza, o feio afasta-nos, obriga-nos a ver à distância.

Se demasiado perto da beleza, seremos engolidos por ela, se demasiado afastados da fealdade, não veremos nada. O pensamento ideal é aquele que dança entre a beleza e a fealdade. Um passo para a frente e um passo para trás até não restar mais passos ao dançarino.

O belo não é sinónimo de verdade, nem o feio é sinónimo de praga.

O Feio e o Belo

 

 


Roberto Gamito

05.11.21

Antes de mais, é admirável, embora pouco, que os arautos da mediocridade sejam os promotores histéricos da arte, da política e de tudo o que mexe. Não podemos chamar estúpido a qualquer pessoa, há critérios pelos quais devemos separar o trigo do joio. Todavia, ao contrário da felicidade e da riqueza, a estupidez está ao alcance de qualquer um. Inspirada no capitalismo, a estupidez segue uma lógica expansionista. Eis a turba de Napoleões com os copos. Belo quadro! Pintem vocês que o meu pincel foi de férias.

Por preguiça, por falta de tempo, também por falta de talento ou de massa cinzenta, ou por um conforto intelectual que reside em atar em vez de desatar, sou obrigado a confessar-vos que careço de ideias capazes de combater a estupidez.
A conversa, o debate, o diálogo, a troca de ideias, a controvérsia são velhas práticas votadas ao abandono, logo não se perde muito se persistirmos nos terrenos na ambiguidade.

A nossa relação com o tempo, sobretudo o tempo morto, tumultuou-se. As pausas são percepcionadas como estorvos e fazemos de tudo para as obliterar. O pensamento desabrocha nas pausas, no tédio. Esses interlúdios entre dois trabalhos chatos onde fantasiamos sítios, monstros e ideias. A lentidão e a espera são uma espécie de adubo destinado a fertilizar a mente. Esse lado verdadeiramente humano aproxima-nos das plantas — precisamos de tempo e luz para crescermos. Sem pausas, a voz que fala é uma voz desafinada. Doravante ficará impossível chegar ao estágio de animal cantante.

Joga-se algo de muito essencial na tentativa de o Homem contemporâneo expurgar o imprevisível. No regime rápido, sem pausas, dá a ideia — melhor dizendo, ficção — de que somos reis e senhores da nossa vida. O mundo afunila-se, perde espessura, em suma, torna-se unidimensional. Só num mundo despojado das suas várias dimensões é possível retirar o factor de imprevisibilidade da equação. Esse mundo, como é fácil de entender, não existe, é um paraíso artificial. Daí que o resultado fique aquém do esperado. Presentemente, o imprevisível, quando surge, torna-se ainda mais dramático, dado que foi dado como animal extinto. A tentação é olhar para o lado, fingir que não existe, puxar da carabina e liquidá-lo.
A propensão para a literalidade, tão própria do Homem do século XXI, é um retrocesso monumental na nossa relação com o mundo. Regressámos ao instinto. A renúncia ao instinto, termo cunhado por Freud, o qual está no princípio de toda a concepção simbólica, já teve o seu momento. Num mundo sem pausas, sem esperas só o instinto pode triunfar. Eis a nova dinastia dos bárbaros.

 

Animal sem pausas

 


Roberto Gamito

05.07.21

Antes de ser oficializada em 487-486 a.C como forma literária, a comédia, que sempre existiu, quer em círculos menos polidos, quer em círculos mais sofisticados, era vista como fenómeno marginal. Vista como menor em relação às outras formas literárias bem estabelecidas, a saber: a tragédia e a epopeia, teve de mostrar desde o início o que valia. 

Não seria estranho se pensássemos que, à época, para as castas privilegiadas, a comédia não passava de um azedume murmurado pelos rebeldes das artes. Actualmente, conforme as ocasiões, a comédia é louvada ou estigmatizada, e podemos verificar do nosso camarote, o qual está sempre a uma boa distância para levar uma pedrada, que esse pensamento, o de a achar marginal, não abandonou a mente colectiva. 

Posto este minúsculo intróito, aproximemos a navalha do osso. 

Partiu em desvantagem em relação à tragédia, obrigando-a a desenvolver um espírito competitivo que, a cada festival, se acentuava. Nessa altura, só havia dois festivais na Grécia, um em Janeiro, mais para os da casa, em que era permitido ser mais duro com a política interna, e outro em Março ou em Abril, aberto a todos os estrangeiros, o maior dos dois, quer em público, quer em prémio. 

Cratino foi o primeiro poeta de vulto no mundo cómico, mestre de Aristófanes, o maior comediógrafo da Antiguidade. 

Desde o princípio que o problema da originalidade na comédia se pôs. Aristófanes escreveu sobre aqueles que fazem comédia: “Que vida desgraçada tens levado, infeliz, sempre à cata de temas novos! Como assim?! E tu, que já lambeste os restos de tudo o que é prato?”

Cratino, antiga glória da comédia, era retratado na velhice como acabado para a arte, um eterno forjador de palermices. Morreu com 97 anos, mas antes disso mostrou ao jovem Aristófanes que não estava acabado com a peça A Garrafa, vencendo o aluno no festival. 

Há uma frase, não sei se do teatro de Aristófanes, que define muito bem o que é a comédia: “Depois da vénia, a ironia”. E como a comédia subverte tudo, não está errado se dissermos: “Depois da ironia, a vénia”. Na sua origem, a comédia era sobretudo paródia. As epopeias de Homero, por exemplo, foram parodiadas inúmeras vezes. Todavia havia uma fome enorme para ser diferente.

O ataque pessoal, cujo pai ninguém sabe o nome, foi burilado e levado aos píncaros por Cratino. O roast é um dos seus filhos. Talvez a sátira também, que pode ser vista como uma comédia venenosa. 

Quem foi o primeiro a fazer comédia? Segundo os registos, foi Magnes. “Tocava lira, batia asas, tingia-se de verde como as rãs.” O pai do humor físico ou, se preferirem, o primeiro Steve Martin. Foi grande no início, quando o público era menos exigente. 

(Contudo, como todas as manifestações nunca estão mortas para sempre, basta tirar uma foto panorâmica da comédia, “exigência do público” pode tornar-se um termo ambíguo, para não dizer errado. A exigência do público levar-nos-ia longe.)

Outra figura importante foi Crates. Segundo Maria de Fatima Sousa e Silva, Crates trouxe à comédia algo que até então lhe fora estranho: moderação, equilíbrio e forma. Será Crates o pai do humor? (Segundo Bergson, o humor é a parte mais refinada da comédia.) 

Aristófanes foi o maior do seu tempo porque absorveu os ensinamentos desses três mestres. Já o preocupava a questão do didactismo na comédia, assim como os ofendidos. Curiosamente, as questões que apoquentam quem faz comédia são sempre as mesmas. 

É importante frisar que Aristófanes atravessou um período em que a comédia florescia e outro em que foi quase banida. 

Há quem afirme que as palavras dos comediantes antigos perecem rápido, não podem almejar a eternidade. Aristófanes legou-nos isto, a respeito dos ofendidos: 

“Mandar piadas a essa cambada que para aí anda, não tem nada de censurável: é antes uma homenagem prestada à gente de bem, para quem saiba ver as coisas como são.”

Afinal há coisas que não mudam.

 

A comédia evolui? Roberto Gamito, Crónica.

 

 


Roberto Gamito

04.12.20

Nas redes sociais, reflexo magnificado do mundo palpável, há lugar para gritarias que nunca cessam, linchamentos por causa de migalhas, alianças de anos que terminam por causa de, espante-se, mal-entendidos. A velocidade galopante é terreno fértil para erros de leitura. Não há tempo para respirar, é cada vez mais uma vida em apneia. Aqui estás seguro, aqui podes respirar à vontade é cada vez mais uma ideia de museu. Esta deixa proporcionava-nos, em tempos idos, um momento para revelar uma série de feridas e cicatrizes. Em correndo bem, saíamos robustecidos dessa conversa. Parávamos, abríamos o coração, ouvíamos, pensávamos, reerguíamo-nos. Actualmente, as paragens destinadas à serenidade e à reflexão são entendidas como grãos na engrenagem, devem ser retiradas o quanto antes. A máxima deste século: o atrito deve ser descartado a todo o custo. Parar para pensar será, dentro pouco tempo, demonizado. Os dataístas já o previram quando afirmaram que o pensamento foi apenas uma etapa no percurso do Homem.

Há também os aceleracionistas, autênticos paladinos da vertigem.
Mal pronunciamos uma informação, começamos a sentir-nos desactualizados. Se não ficar para trás, hei-de escrever sobre eles um dia destes. Acrescente-se os xenofeministas, para quem a natureza foi apenas um apeadeiro. Em parlapié de taberneiro, devemos deixar-nos de merdas e abraçar a tecnologia de uma vez por todas. O pós-humanismo ao virar da esquina. Finalmente aquela ideia da qual ninguém queria falar está a ganhar corpo: tudo o que é humano atrasa-nos.

Desgraçadamente, livrarmo-nos da fricção do pensamento só nos torna mais coléricos. Cada um de nós transporta ofensas que, ao não serem verbalizadas ou sublimadas em arte, se vão precipitando para os terrenos da ilegibilidade. Eis-nos chegados à cólera, terra de todos os desenlaces, província vedada ao diálogo, país da catástrofe, do sangue.

Parar para respirar proporciona a oportunidade de levar a cabo algo muito raro — nos padrões de hoje, impensável —: criticar sem raiva.

À nossa volta, o ambiente é tenso e desagradável. Estaremos nós a assistir aos últimos dias do pensamento?

 

acelracionista, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

18.11.20

Se se estabelecesse uma escala de decadência, o Homem esfarrapado entraria na categoria das ruínas indevassáveis, que é como quem diz, o turista é incapaz de abarcar a totalidade de um homem esboroado pelo tempo. A vida é esse monstro de duas caras: ora tememo-la, ora idolatramo-la.
 
O pensamento, e a reboque dele a literatura, são perturbações, passos avessos à clareza, gestos de uma coreografia interminável em direcção ao ignoto.
Num só movimento, o pensamento arranca árvores gigantescas pela raiz, qual Orlando furioso, lançando-as para a província onde a língua se acanha. A certeza tornada dúvida novamente.
Se preferirem, o pensamento é uma máquina de gerar abismos. Daí que, seja na vida, seja na literatura, a tendência actual seja evitar os socos no estômago em detrimento das carícias no ego. Recusamos o desafio, isso trar-nos-ia problemas corpulentos, a saber: abriria rachas no ego, o qual se julga dono do conhecimento e por conseguinte capaz de decifrar cada migalha sem hesitações. Desprezamos a todo o custo essa machadada no que julgamos saber.
Inventamos desculpas, como a empatia de pacotilha, a qual é papagueada até à desagregação, evitando os objectos capazes de nos fazerem tremer.
 
O pensamento é um pé de cabra, só ele pode escancarar as portas que teimam em não abrir. Há demasiadas coisas a lamentar nessa viagem. É uma jornada penosa que atravessa os apeadeiros do inferno. Como é então possível que nós o celebremos?
Quanto aos outros não sei, mas a mim aborrece-me a condição de homem ingénuo. Só há duas formas de estar vivo: ou a lutar ou a fugir, ser ingénuo ou ser herói; todas as outras mais não fazem do que diversificar os cambiantes. Mais uma vez Homero: o cerco da Ilíada, ou a jornada da Odisseia.
Herói, entenda-se, é aquele que dá um salto rumo ao desconhecido.
 
Para o homem que envereda pelo trilho do tumulto, o lado trágico adquire uma intensidade extremamente penosa. Esse jogo coroa, inevitavelmente, o esmagamento do ego. Doravante tudo parecerá irrisório: nada me poderá tentar a não ser o amor. Acrescento: amor sem máscaras, dado que a ingenuidade, uma vez perdida, jamais será recuperada.
 
Pensar até que o mundo deixe cair as suas máscaras é a única escolha possível, se não quisermos sucumbir à fantasia imbecil de que somos reis e senhores do universo.
 

Pensamento, Roberto Gamito

 

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