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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

25.01.22

Se cometêssemos a ousadia de inventariar os comediantes mais intrépidos de todos os tempos, aqueles que aproximaram a sua cabeça do cepo em virtude da sua arte, teríamos de pensar em personagens como Swift, Rabelais, Aristófanes. Nestes três grandes encontraríamos ainda uma réstia de amizade para com as convenções, tal não acontece com Diógenes, o Cínico.

Diógenes, apelidado de cão celeste por um poeta da sua época, Sócrates louco por Platão, o cínico por excelência, é o santo padroeiro do escárnio. Ele sim podia dizer que era o comediante da verdade. Nunca houve nem haverá outro como ele. A sua verdadeira demanda era o rosto humano acoitado sob as máscaras. Procurava avidamente o monstro que o Homem tenta engaiolar numa teia de farsas.

Diógenes está nos antípodas do século XXI. Nós, contemporâneos das sobras, somos acólitos da pose, enquanto Diógenes a suprimiu por completo. O cinismo dele não é o cinismo da nova escola, o cinismo da fragilidade, quer dizer, o cinismo típico de consumista. O cinismo de Diógenes não é um escudo, é uma espada.

Ao contrário do fandango actual, isto é, o círculo de legitimação onde papagaios engalanados disparam um discurso leproso e a roda contínua de afagos mantém o grupo de embusteiros coeso, Diógenes mantinha-se à margem. Que monstro aos olhos de quem anseia manter a farsa da reputação de pé! Quantos falsos profetas e falsos sábios tremeram só de saber que Diógenes se aproximava? Quantos reis viram a sua coroa evaporar ante o olhar do cínico? Quantos ricos viram a sua riqueza liquefazer-se após um comentário do cão celeste? Quantos poetas se suicidaram após se darem conta que o seu canto nada tinha que ver com o Homem?

Diógenes não papava grupos. Sem mestres nem discípulos, era o sumo pontífice do Homem no templo do Deus desconhecido. A hipocrisia é a religião inimiga das evidências.
Se há algo imutável no homem é que este nunca teve coragem de aceitar a sua verdadeira imagem e que sempre recusou as verdades sem contemplações. Enfarpelamos a nossa ignorância com barroquismos, confundimos verticalidade com pose. Coleccionamos poses com o fito de ocultar os ângulos mortos da nossa fragilidade. Dois mil e tal anos de ecos, oriundos de santos e ascetas, papagaios e pernetas, de nómadas e de cabeças sedentárias mesclaram-se e deram origem ao edifício das nossas certezas. É uma catedral presa por arames, no interior da qual, qual Diabo no nono círculo de Dante, fermenta o animal colérico chamado Homem.

Por vezes sou assaltado pela ideia de que as línguas são longos rituais de encantamento que visam adormecer o bicho que repousa no interior deste labirinto de máscaras. Tentar blindar-nos de uma verdade cegante é tudo quanto o Homem almeja da palavra. Não é destituído de graça que o maior conhecedor dos seres humanos, Diógenes, tenha sido apelidado de cão: farejou onde os outros não encontraram nada — perdoem-me o gracejo.

Não me tapes o Sol, disse Diógenes a Alexandre, o Grande. É necessário regressar do inferno da loucura para estar à altura desta deixa. Talvez não seja descabido recordar um episódio menos conhecido do Cínico. Ao entrar em casa de um sujeito abastado, em que tudo brilhava de tão limpo, foi-lhe recomendado: “Sobretudo, não cuspas para o chão.” Diógenes, que estava com ganas de cuspir, lançou-lhe o cuspo para a cara, que era o único lugar sujo que tinha encontrado. Quem é que nunca sentiu vontade de, a meio de uma festa de ricos alheados, cuspir oceanos de saliva nas suas carantonhas e só descansar quando o cuspo fizesse as vezes do dilúvio? Somos ridiculamente prudentes, equacionamos cenários onde podemos tirar lucros da nossa subserviência. Pomos cu, coração e cérebro a render: eis-nos chulos dos nossos neurónios.

Diógenes, o homem do tonel e da lanterna, o homem que procurou o homem bom, o homem que se masturbava em praça pública e dizia: “Quem me dera que bastasse também esfregar a barriga para se deixar de ter fome”. O sábio que punha a nu as fragilidades da sociedade apenas com uma sarapitola. Foi falsificador de moedas na juventude, e daí para a frente empenhou-se a despir o homem dos seus vernizes enaltecedores.

O Homem que não se curvou diante ninguém, fez pouco de Alexandre, o Macedónio, Platão e de qualquer rico que lhe aparecesse à frente. Não propôs nada. A sua postura não é um modelo edificante, foi um homem sem pose. Foi o primeiro e o último da sua escola. O Sócrates louco fez rir, fez pensar, mas sobretudo desmascarou o Homem — eis a comédia plena.

Diógenes, o cão celeste

 


Roberto Gamito

05.01.22

Platão era detrator da maquilhagem e da poesia. Unindo os pontos de forma humorística, tudo leva a crer que o menino Platão era contra tudo o que embelezasse a língua e o corpo e só investia numa relação se a mulher se apresentasse nua e, em vez de falar, grunhisse, dado que a palavra maquilha o pensamento humano.

Segundo o pupilo de Sócrates, a beleza é simples, pura, sem misturas, estranha à perversão das cores e a todas as vaidades humanas. E ainda Platão: “procurar embelezar-se através do vestuário é uma prática malfazeja, hipócrita, baixa, servil”.
“Qualquer trapinho te fica bem” é um elogio que pode ir beber a Platão. Olha que há destinos.
Platão, gigante entre os gigantes, sumidade na filosofia ocidental, passou ao lado de uma grande carreira de crítico de, termo da altura, modas bárbaras. Imaginá-lo hoje nas caixas de comentários das fotos de influencers dá-me uma barrigada de boa disposição.

Imaginemo-lo nos dias de hoje a comentar as típicas fotos de influencer no Instagram.

Influencer publica uma foto toda maquilhada.
Platão: Excelsa mulher de peito farto, trata-se de um simulacro perverso que deve ser rejeitado o quanto antes. Tanto as cores como as formas do rosto foram manipuladas pela maquilhagem. Fico à espera de uma foto em que surja sem pós milagrosos nas trombas.

Influencer publica uma foto de soutien.
Platão: Curioso, explorou habilmente a fraqueza da percepção masculina, criando ilusões e revitalizando o rei das terras baixas. Não sei como consegue dormir à noite quando sabe que engana a vista dos ingénuos e perturba o espírito de tão frágeis homens. Faça um favor à humanidade e não especule o tamanho das tetas.

Influencer publica uma foto com grande ênfase no nalguedo.
Platão: Procurar enfatizar as nádegas, tão ao gosto do selvagem, ainda por cima com filtro de Instagram, é uma prática degradante. Acaso o faça, faça-o sem artifícios. Um rabo sem auxílios da maquilhagem e da tecnologia. Um rabo como o seu não necessita disso, é como a luz no seu zénite capaz de fertilizar e encher a cabeça do homem de ideias fecundas. Como sabe, não sou leigo em matéria de rabos. Não me querendo gabar, mas cá vai alho: sou o pontífice máximo do assunto. Não é o homem que escreve estas linhas, mas um estudioso neutro do cu.

Influencer publica uma foto com as tetas de fora.
Platão: Apesar do inegável prestígio do mamaçal, ocultar os mamilos é uma prática condenável, porque priva a mama do seu epicentro. O olho masculino, carente de um ponto de referência, vê-se perdido ao abarcar tamanho decote. A forma como põe os braços, de molde a que as tetas pareçam maiores, apesar de visualmente estimulante para o animal faminto, é altamente desaconselhável. As mamas merecem a verdade.

Influencer publica uma foto em que surge com o cabelo louro.
Platão: Ao contrário de Afrodite que se banhou no rio Escamandro a fim de tingir o cabelo de louro, resultando o título da mais bela das deusas atribuído por Páris, em si não surtiu qualquer efeito: continua feia como uma bota gasta. Não fosse dotada de um rabo olímpico e estaria condenada ao anonimato. Faça o favor de modificar a sua postura na próxima fotografia.

Influencer publica uma foto de jardineiras.
Platão: Apague a foto, essa farpela está a ferir-me as vistas. Os seus adoradores não merecem tão excruciante experiência. Admita o seu erro. Para compensar, contento-me com uma nude na caixa de mensagens. Deleitar-me-ia a descrever minuciosamente as delicadas nuances amiúde ocultadas pelas suas tristes farpelas.
A roupa, minha cara musa, trata-se de uma excentricidade tardia.
E a conversa segue na caixa de mensagens do Instagram.
Influencer: Meu bandalho, és igual aos outros, só me queres ver nua.
Platão: Tenciono ver o teu corpo desnudo, porém, ao contrário dos outros, procuro igualmente a verdade. Seria uma alegria para mim encontrar a verdade no teu corpo ao léu.
Influencer: Não vou cair na tua cantiga.
Platão: Cantigas? Poesia? Isso é que não, vou bloquear-te. Mas primeiro manda a nude.

Platão e a Influencer

 


Roberto Gamito

04.02.21

Não é fácil superarmo-nos através da via sinuosa da escrita em tempos como este. Não que inveje o tempo de Platão, embora pudesse passar por lá se me convidassem para uma patuscada, mas, ao contrário de nós, ingénuos e papalvos, esse menino sábio e barbudo não era disputado por um oceano de solicitações, a maioria das quais inventadas, já que temos de entreter os macaquinhos no sótão com alguma coisa. Mas isso é tão-somente a pontinha do icebergue. Acrescente-se os milhões de barulhinhos e ruídos adultos que congeminam para nos esfrangalhar a cabeça, a qual nunca foi grande espingarda. Vamos dar um exemplo concreto, embora prefira os exemplos abstractos. Escrever numa esplanada de uma pastelaria em pleno século XXI com vista a erigir uma obra que nunca será devorada pelo tempo.

Estou sentado como se fosse um escriba corcunda, como se estivesse a ser sugado pelo texto, com o rabo dorido, dado que as cadeiras, excepcionalmente desconfortáveis, têm o propósito de afastar os foliões de pastelaria o mais rapidamente possível a fim de dar lugar a rabo novo. Ingressando nesse aparte, faz falta um estudo razoavelmente sério sobre as consequências de, em sítios aos quais os poetas e restante turba de criativos recorrem para ter ideias, o conforto cair de ano para ano. Cadeiras como estas não podem dar à luz Pessoas; quando muito, líderes políticos nervosos ou animais indignados.

Se o desconforto prosseguir na senda da perfeição, faltará pouco para haver cadeiras com o assento cheio de vidros partidos. Enfim, daí em diante as esplanadas só terão uso para os faquires.

Além do desconforto da cadeira, há conversas — e que chatas que elas são!, ignoro como é que os escritores do século XXI se inspiram — que nos interrompem o ritual criativo. É um engodo. Escutamos certas palavras ou frases que despertam a nossa curiosidade ao chapadão, a saber: cona, fodi até me fartar, e vai-se a ver a coisa desemboca numa patranha contada às três pancadas. Como é que alguém pode regressar ao texto após ter sido alvo de um embuste deste carácter? O lado bom, embora nefasto para o transe da criatividade, é a beleza das mulheres. Não obstante o facto de carecer de fotografias das mulheres da época de Platão, arriscar-me-ia a postular isto: as mulheres estão a ficar progressivamente mais bonitas. Assim torna-se árdua a tarefa de escrever sobre migalhas.

Suponhamos o seguinte cenário: um poeta a escrever sobre um pardal, indeciso entre o verbo cantar, entoar, buzinar e musicar e que, de supetão, é interrompido maravilhosamente pela visão de uma mulher bem arrumada de carnes. É impraticável continuar devoto ao poema. Ao pôr as coisas em perspectiva, o poeta aperceber-se-á como a sua missão é disparatada.

Há ainda o coro das buzinadelas, pessoas que conduzem como se estivessem sempre num cortejo de um casamento, sons de notificações a pingar no telemóvel como se a torneira do mundo virtual estivesse a precisar de arranjo, cadeiras a arrastar, alguns piropos tartamudeados, não vá a mulher ouvir e ripostar com ferocidade, o som da música do estabelecimento, amiúde mais irritante que inspiradora, crianças à marrada com as cadeiras, um jovem com uma coluna na mesa ao lado a promover os seus gostos, velhas indagadoras, as quais banem do coração dos incautos qualquer vontade de viver. Coisas que obrigam o criativo a ponderar o suicídio sem nunca alcançar a poesia.

Visto deste prisma, Platão já não nos parece tão genial. Sem distrações também eu.

 

(9-7-2020)

Escrever em tempos ruidosos, Roberto Gamito

 

 

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