Roberto Gamito
26.11.23
Na estante
tornada móvel pelo sismo
aonde vamos acomodar, lado a lado,
as memórias carunchosas
desta vida leiloada ao Diabo
Verso devoluto, nem canto, nem tão-pouco feras,
somente sereias gagas e em princípio afónicas.
Prende-se o Ulisses ao mastro para nada,
é sempre a mesma cantiga
de tão cansada não nos ilumina nem nos obscurece.
Para estes lábios, que por estes dias alcançaram o deserto
segundo a rota do analfabetismo, efeito colateral da ausência
que bom que houvesse tempo para soletrar
estas e outras palavras rombas
talvez, inspirados na morte, as limássemos
e déssemos à luz uma ninhada de gumes.
Sobras de ave, um apelido sem a primeira sílaba, um mito a ganhar ares — nem sequer é piada — de Ícaro. Em todo o lado semeio a minha querida queda.
Essa vasta cabeça desocupada
viveiro de demónios por vir
a simulação de recomeço
irrefreável número circense
com que entretenho os demónios.
Por que buracos e redes se escapam os vossos peixes? Este esquelético e camaleónico edifício de rancor a que muitos chamam humano é incapaz de hospedar sonhos e felicidade sem resmungar.
Escrevo outro poema
pela necessidade
ou pelo vício de me libertar
comparo-te à saída do inferno
aos nomes que a memória vai mesclando
numa única quimera impronunciável.
Bicho de um sem-fim de cabeças
és um livro lançado ao fogo
com o fito de o educar.
Esta luta entre a vontade de dormir e o café, que, com meros mililitros se opõe à minha vontade, o trabalho que se espraia durante horas e de seguida dias, qual nódoa ingovernável com tiques napoleónicos
tarefas que me devoram horas e a vida na mesma dentada —
bizarro ritual onde me descubro quilométrico e celeiro de feras interiores.
O uivo que me animaliza e liberta do nome no mesmo fôlego.
Uma ponte que vou soldando ao teu perfume. Um dia espero completá-la e regressar a esse dia em que nos conhecemos.
A sentença da qual os animais fogem quando sonham, ao ar livre, com o matadouro. Bebo o meu reflexo do bebedouro como quem extingue a sede
para que a morte se esqueça de mim.
A mão destinada
ao inventário de cacos
a carne em condições
de ir para o lixo.
Tenho o cuidado de passar longe das tuas palavras, não vá ser contaminado com os teus atalhos. Tem paciência, neste reino mando eu. Repara bem: atrás de mim há uma pilha de regicidas.