Roberto Gamito
25.09.22
Venho à tona do texto, espevito para as ruas apinhadas de nomes, pessoas mergulhadas nos ecrãs, à marrada com os postes, duplos falhados de Neo, os quais acolhem no peito um ror de balas e facadas nas costas, zaragatas em flor, crianças que alternam entre o choro e o sorriso como se fossem loucas, cafés superlotados de esboços de assassinos e quem sabe a voragem que nos há-de engolir a todos.
Sorrio estimulado pela primeira frase. Ingenuamente, sou catapultado para alguns períodos da minha biografia, agradeço a solicitude da insânia, todavia fico de fora das cidades muralhadas. Ver-me-ão as memórias como mongol que não descansará enquanto não as vir consumidas pelo fogo? Sacrificar tudo, a mais cómoda forma de idolatrar Deus.
Em cidade alguma o amor prosperou; invade-me o sossego de reconhecer o fim como personagem secundário num sem-número de conversas sem importância. Ninguém viu a morte sentar-se à mesa de cada família. A hospitalidade sem critérios lixou-nos.
Os dedos apertando os pescoços das memórias mais dolorosas, de seguida, feitos vampiros, havemos de lhes beber o sangue.
Isto de dia; à noite era tudo muito mais preocupante.
Quando tinha fome levantava-me do ataúde da minha depressão, embriagava-me com o brilho postiço da lua e erigia do meu desespero os meus minúsculos deuses — daí resultava uma cor única, capaz de esmagar com a sua canção o quadro mais encorpado.
Despiu-se à minha frente
estava eu a meio do poema
de supetão metamorfoseado
na ígnea pele dela escrevi
de um só fôlego o que se segue:
Não falarei de como escapei ao inferno, não confessarei como encontrei portas em paisagens abstractas; há quem me conheça como insólita província inescapável. Ignoro se há mapas para alcançar o núcleo do Homem.
Sempre me intrigou os conventos ou mosteiros rente ao mar. Será que as freiras e os monges precisam de fechar os olhos e imaginar um coração a bater ao rés do seu peito solitário, de conceber um vaivém de ancas divinas, aptas a leccionar o amor prático?
Encaixoto a exposição, digamos, artística e movo-a para o futuro. O fresco de moldes realistas reduzido a um esboço abstracto. Quem é a memória senão a musa que sob os seus mil ardis tem o sonho secreto de ser pintora?
A falta de paciência distorce o dicionário de uma ponta à outra, não ignorando os vocábulos mais comerciais, num estalar de dedos — a isto as gentes medievas apodariam magia.
Sobre as mesas instalam-se bichos esquartejados pela ciência.
Ei-las, as marés de fantasmas.
Aqui, entre as minhas mãos, o inferno teve um lugar.
O furacão helicoidal gera acasos de improviso. Os pacientes, a uma distância bem medida do psicólogo, sentados em sofás que já ouviram tudo.
Agora que não resta nada senão o cadáver divino, peço ao deus da escrita isto: Não me perturbes com os teus pedidos, não me exijas mais sacrifícios, a memória já me dá dilúvio pela barba.
Ah, o debandar maravilhoso das possibilidades quando jovem, as mãos vazias de caminhos a assaltar frases alheias à procura de alguma luz. O vício atira-nos para o seio de um quadro vazio e, risivelmente, a nossa presença não se faz sentir. Apesar do nosso infinito desconsolo, a tela branca permanece imperturbável.
O último suspiro das estrofes
o regresso de gatas aos teus lábios
pelos caminhos ínvios da memória
beijo o rosto habitado de lacunas.
O corpo que demos como perdido nos nevoeiros das relações falhadas. A queda é tão lenta que se confunde com o voo — eis a beleza da vida.
Na folga do corvo
qualquer bicho pressagia.
Recebe nas pupilas esfomeadas
bem longe do desespero até pareces criança
as notas de rodapé do cenário idílico
paisagens hoje consumidas
devoradas gulosamente cerce às pernas da amada.
Sacodes a esperança da farpela de palhaço, atiras-te às lâminas qual canário ao alpista. Eis a procissão de facas por onde os episódios biográficos foram sendo desmantelados. Desse dia chegou-te um braço numa caixa parcialmente negra.
Terás de reconstruir a rosa
pétala a pétala
como quem joga as mãos ao fogo
para resgatar uma cidade inteira.
Hoje tenho tentado ser feliz, porém sem resultados. Quero que tudo soe áspero e trágico, sem necessidade de comentários adicionais ou jornalistas. Quero que bebam o mundo sem intermediários. Então repetirei: o meu labor é a queda.
Em todo o caso, o mundo insuflava as frases, via nelas cidades grávidas de sentido.