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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

04.12.22

Quero cultivar-me. E então, quem te impede, questiona a mesma personagem com outra voz. Nada restou, todavia, da sua poesia.
O bando de estorninhos lesa-nos o intelecto com o seu circo de formas. Reparem como é belo o medo e o falcão. K. naturalmente faz parte do cânone eleito. O olhar caído na folha tem por fito iluminar um pouco mais o corpo feito lacunas de Deus, o qual sobreviveu graças às citações enviesadas das aves negras. Em não faltando coragem, será o estudo introdutório dedicado às fontes das cicatrizes e, em ganhando balanço, havemos de desmentir Ovídio. Ponham lá um sorriso nessa cara desfeita, arranjem lá espaço para mais uma leva de feridas.
Fartinho dessa prosa atrelada ao lugar e ao tempo e, aproveitando que pusemos a cabeça no cepo, da altura a reboque da fama. Desta feita, farei aquilo que acabei de condenar.
Aqui estou, vindo do bafo do Deus das Moscas. Cacemos então grilos com mimos de caça, façamos do empecilho ratoeira.
Hermes, do outro lado da porta, deus dos gonzos. Acaso deliras?
Ali onde as máscaras foram penduradas jaz um sem-número de artes. Já aqui andas? Não escapaste há pouco do cadafalso? Não me envergonho de ser esta triste figura, sem Rocinante mas com pança tenho vencido os meus ágeis moinhos.
Um dia essas palavras por-me-ão a correr. A minutos do fim todos os versos soarão a profecia. Entretanto não confundas putas com Hécate. Estou arruinado: fui visto a escrever uma frase genial.
Abreviadamente, podes dizer, quanto ao estilo da canção que te chega aos ouvidos, que é uma perífrase para 'amo-te'. Hei-de fermentar as mais magras migalhas, até lá não expulsarei as mandíbulas da escrita.
Em nome de costumes mais antigos, comunicar-vos-ei que 'escapadela' era o nome dado a uma dança cómica de natureza obscena. Daqui até ao sexo vai um mal-entendido, diria um pau friorento.
Há mais de mil anos que o Helleborus deixou de fazer efeito.
Onde antes havia um mero buraco há hoje um báratro, um poço onde eram atirados os criminosos em Atenas. Para evitar a hiperinterpretação do termo, digamos que nunca fui a Atenas e troquei os criminosos por fantasmas. Estás com azia, não é?
As mulheres interditam o reino do baixo ventre
isto ouvi eu quando fui à Antiga Grécia
altares ontem quentes hoje abandonados.
A fruta que amadureceu antes de o Homem lhe dar nome, pesada pela mão desonesta do poeta, lida por quem confunde gotas com oceanos.
Ideias prensadas num instante. Examinarei isso com os meus melhores olhos, prometo, mentimos nós descaradamente.
Foda, competente vocábulo; serve-te do meu corpo e da minha língua desfivelada. Ó tolo, sussurra a deusa, anda cá, livra-te dessa cegueira. Seja amor ou mais uma maquinação de Empusa, a partir daí tudo o que vier é ganho.
Buscando a mulher, aqui chegamos. A solidão já nos permite outros folguedos. Nota-se uma falta de vocabulário após o império do calor. Empusa, rainha da metamorfose, alimenta-se de carne de homem.
Em todo o caso, não teríamos escapado inteiros até aqui. Não tiro uma vírgula ao meu desnorte.
 

roberto gamito


Roberto Gamito

06.08.22

Incapaz de arquitectar uma crónica ardilosa que possa ser vindimada com gosto pelas pupilas dos vindouros, prenhe de altos e baixos frutíferos aptos a entusiasmar até o mais exigente leitor, criatura capaz de espremer o rouxinol com o fito de despertar o que se acoita nas reticências, resta-me — oxalá as forças não me deixem a patinar neste lago siberiano da escrita onde, círculo após círculo, engrandeço a minha prestação diante dos júris do ridículo — esfrangalhar a mão contra as rochas do quotidiano à espera que o sangue encapelado desse embate me ofereça umas míseras linhas. A vida, supondo que isto não é um sonho, ou um holograma ou uma história engendrada por um deus com pouco que fazer, é pródiga em enganos, fértil em escaramuças e, em havendo tempo para procurar, poiso predilecto de insignificantes pepitas, nomeadamente paixão, amor e banquetes de fazer brilhar o olho ao mais criterioso glutão. Em jeito de súmula, a vida acontece à revelia da nossa vontade.

O bêbedo olha para mim e eu retribuo o olhar e ficamos assim, sem deixas, como dois palermas sem guião. O que não abona muito em favor quer de um, quer de outro. No cume da minha ingenuidade, quase acreditara ter encontrado a nascente da inspiração. Equivoquei-me, é um bêbedo raro, daqueles que não partilham nem por nada as suas histórias e teorias. Assim sendo, lá terei de continuar sem o milho da inspiração terrena, enfim, sou tomado de incertezas quanto aos fados desta crónica. Prossigo, portanto, de mão vazia e a tremelicar.

À minha frente, com uma camisa cujas cores deviam dar prisão sem direito a julgamento, um homem que, se descontarmos os poucos cabelos, que se exibem na tola do animal como um tufo humilde num deserto, é careca. A criatura a que muitos chamam homem é acompanhado por uma mulher que dá ares de esposa, sei-o pela forma severa como repreende o marido, a eterna criança a necessitar de chibatada. A mulher — juro-vos não estar a inventar para fins de comédia — possui uma camisa igual à do marido. Não me perguntem como é que ainda não se criminalizou isso. Uma pessoa inocente, vítima insofismável, olha para esse cenário desconcertantemente garrido e apanha um trauma que o acompanhará até à cova. Até digo mais, sou dotado de um conhecimento enciclopédico no tocante ao gostinho que as mulheres têm em fazer com que os homens passem por parvos, como se fosse uma tarefa que exigisse grande esforço, daí que esteja em condições de afirmar, embora o negue se for confrontado por alguma feminista, que a mulher obrigou o homem a fazê-lo. Até acrescentaria: a mulher detesta a camisa. No fundo, o que a mulher está a declarar com este comportamento é: vejam, casei com um paspalho, consigo vesti-lo com a camisa mais ridícula de todas, mais, vestimo-nos como se fôssemos gémeos carrancudos e ele nem pia. Contemplem o poder da vagina! Um aviso claro às outras mulheres. Vejam, este espécime está totalmente domesticado. Ao depararem com este ser agrilhoado, as mulheres dirão aos maridos: estás como queres, mas isso vai mudar, não me casei contigo para andares aí como se fosses um animal selvagem. Anda comigo ao shopping, vamos comprar as camisas mais medonhas que encontrarmos. Vai-te fazer bem ao ego, murmura a mulher com um sorriso de orelha a orelha.

Mulher, domadora de homens


Roberto Gamito

04.08.22

Não obstante os dias esburacados pelas traças da memória, dias cujas temperaturas oscilam entre o fresco e o calor vulcânico, os quais são termos muito derreados do ponto de vista do uso quotidiano, e, como se não bastasse, que as coisas más possuem sempre lábia para se fazer acompanhar dos parceiros mais singulares, inadequados do ponto de vista científico, o país lá vai andando a cavalo, qual mongol paciente e figurante no massacre, numa placa tectónica, à deriva, agarrado à bóia da História, ao sabor do vento, essa mão calejada e etérea que nos salga como lágrimas, mais para lá do que para cá, uma vez que é para a morte que mundo e homem se encaminham, vogando qual jangada de pedra, para piscar o olhinho a Saramago, nadando amadoramente segundo teorias de uns e de outros, as quais aprendemos custosamente na escola ou na vida, supondo distinguíveis os dois, digamos, estabelecimentos. Movemo-nos sem alarde nem megafones, com passadas miúdas e quem sabe decididas, quase imperceptíveis, passeamo-nos por cima das brasas, o manto, para surripiar um termo da geologia, como se o país fosse um grande faquir patrulhando enigmaticamente a superfície do inferno sem cuspir uma palavra, de olhos fechados, batendo uma e outra vez com a cabeça na porta fechada do paraíso. Andar por cima do inferno já é uma proeza superior, outros que a comentem e que a interpretem, quando deixarem de se sentir maravilhados pela pequena façanha de Jesus, o que caminhou por cima das águas, pensará o país. Mesmo que falássemos, mesmo que fizéssemos uso do grito, ninguém nos ouviria. A maldição de Babel atingiu o seu cume, o seu fim: cada homem fala uma língua diferente. A comunicação é agora impossível ou sempre o foi; seja como for, actualmente, carecemos de dúvidas, e é por isso que a diplomacia e os almoços de convívio são tão urgentes. Ao menos mantemos a boca ocupada entre pitéus e beijinhos. À falta de amor ou poesia para o cantar, é tudo o que temos neste momento.

A vida é sofrimento, é andar em cima de brasas, e com o tempo, em calhando encontrar o caroço da experiência, é aprender a tornar o processo mais suportável e tirar partido disso. Construí a minha vida em cima das brasas, diria o homem comum, se não lhe tivessem surripiado a voz. Não falamos nada daquilo que queríamos falar. Somos aquele louco da anedota iraniana que, quando alguém lhe pergunta a razão do seu silêncio, riposta “Não vejo ninguém que possa dar-me resposta”. Não me venham com histórias, sejam elas maiúsculas ou minúsculas ou mesmo sem h. Os hospícios fecharam um pouco por todo o mundo. Numa primeira leitura, poderíamos ler levados a pensar que o número de loucos diminuiu grandemente nos últimos anos. Num olhar mais atento, que nem precisa ser dos melhores, um olhar de fato de treino, um olhar daqueles que usamos em casa, percebemos que, ao contrário dos hospícios, as redes sociais são sítios onde os malucos podem gritar sempre que lhes apetece. Convém relembrar que isso lhes era vedado no manicómio. Havia uma duração a partir da qual o grito tinha de ser abolido, seja por injecções, cacetada, electrochoques ou por outras formas que o homem lá foi arranjando, ao longo dos séculos, para lidar com o outro-mor, o louco. Os loucos, como os homens ditos normais, supondo que esses não foram inventados por uma deidade com pouco que fazer com o fito de tapar um buraco num poema já esquecido, procuram o melhor para a sua vida. Não os consigo condenar.

 

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Roberto Gamito

31.07.22

Túnel de Vento é simultaneamente um podcast de comédia e um erro.

Há improviso, humor, lamirés sobre literatura e poesia e, de longe em longe, javardice de elevado quilate.

De Roberto Gamito e suas vozes.

Uma hora e quinze de cabeça faminta.

 

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Apeadeiros da conversa:
.Os gafanhotos são vândalos.
.Reflexão sobre os golfinhos.
.O lagarto bombeiro.
.O cão, o actual melhor amigo do Homem.
.Cavalo, o antigo melhor amigo do Homem.
.Humorista Mongol.
.Os cavalos não existem.
.Golfinho, o futuro melhor amigo do Homem.
.O bacalhau inspirou-se no ser humano.
.Se Deus quiser.
.Deus te abençoe.
.Meteorologia antes da invenção do termómetro.
.Repensar a nossa relação com as formigas.
.Meditação sobre a prisão de ventre.
.Fisioterapia badalhoca.
.Sumo de maçã.
.Saco reutilizável e cão.
.A minha vida foi um grande erro.
.Reflexões sobre o artista.
.Frases e citações soltas.
.Não sei fazer nada.
.Ensacar e o olhar reprovador.
.Adultério na Idade Média.
.Temperança.
.“Foi apanhado a beber”.
.Bêbedo activista numa operação stop.
.E mais.

Podem ouvi-lo no Spotify ou em qualquer plataforma de podcasts. 

 


Roberto Gamito

21.07.22

Se me proibissem o uso de palavrões, seria incapaz de exprimir com pertinência a tempestade que me povoa o cérebro quando observo de olhos esbugalhados e de boca escancarada as matilhas contemporâneas a apedrejar infatigavelmente o comediante, esse saco de pancada universal. No entanto, urge vestir a bata da seriedade, não confundir com a do médico, que esse é um burlão, diz que trata da saúde às pessoas mas raramente distribui sopapos aos pacientes, e munirmo-nos, não de um bisturi, mas de um facalhão apropriado para a dissecação destes temas comichosos.

A relação actual das massas com o humorista é prenhe quer em algazarra, quer em sentido. É como se fosse uma bulha ininterrupta: há sempre alguém a apanhar, sempre alguém a gritar e, como não podia deixar de ser num evento de luta destas dimensões, sempre alguém a comentar. Desconfio que podemos encontrar o Homem do século XXI tal como ele é, desnudo e mínimo, se aprofundarmos a compreensão desses fenómenos.

Segue-se o inventário compacto das minhas comichões.

1) Somos endeusados pela indignação.
A partir do momento que faz a sua apreciação negativa à laracha, o ser humano típico das redes sociais é impelido por uma necessidade indomável de verbalizar a sua reacção, dado que, neste século, não há nada que deva permanecer na esfera privada. Seria estúpido da parte do indignado sentir-se furioso e não tentar lucrar com a situação, seja esse lucro de pendor monetário ou de pendor reputacional.

Quando possuído pelo espírito da indignação, o Homem salivante sente-se legitimado para tudo e mais alguma coisa. A chalaça não me caiu no goto, logo sou estúpido (segundo o meu humilde parecer de observador autodidacta), logo vou linchar o déspota da laracha. A piada e principalmente o autor da piada levam no lombo e, reparem como isto fica perverso, a vítima nem sequer tem o direito de se queixar da pancada. Caso se queixe, é novamente alvo de críticas. O chamado mamar e calar. É preciso frisar a tinta fluorescente que estes bárbaros eram, até há minutos, acólitos da empatia e segredavam entre pares que o mundo precisa é de amor, compreensão e diálogo. Lá foi a máscara de boa pessoa para o galheiro.

2) Julgar um padrão graças a um ponto.
Este século é fértil em estupidez e em contradições. As pessoas não se inibem de comunicar-nos que não gostam de ser julgadas são as primeiras a julgar, não uma, mas milhares se estas forem contra a sua opinião. Se não acho graça, ninguém pode achar graça. Aliás se acharem graça são todos doentes, nojentos e outros apodos que ficam bem no currículo de qualquer canalha.

Embora seja um espectáculo deveras entusiasmante julgar alguém à queima-roupa por um acto, neste caso mínimo, a apreciação de uma piada, não posso deixar de dizer que é um comportamento enervantemente pueril. Ninguém consegue julgar uma pessoa com base em algo tão insignificante. Para percebermos a tendência necessitamos de vários pontos e de muitas experiências. Estes meninos raivosos, os quais se dizem amigos da ciência, comportam-se como se fossem profetas. Só eles sabem a verdade.

Como diria o outro, o eclipse da razão será a nossa desgraça.

Mas vamos dar uns minutinhos de folga ao cérebro e mudarmo-nos para o seguinte cenário. Eles têm razão: é possível julgar uma pessoa com base numa reacção a uma piada. Imaginem o ganho civilizacional que seria. O suspeito seria julgado com base numa piada dita ofensiva. O juiz contava uma laracha de humor negro; caso o tipo esboçasse um sorriso, era condenado, caso contrário, seria inocentado. Só tinha um inconveniente: o juiz seria descartável, só dava para um julgamento.

3) Eu é que sei o que é humor.
Em tempos idos, o Homem chegou a um consenso de que o humor, tal como as restantes artes, tende para a subjectividade. Não neste século. O mal dos viciados pelo literal é que são cegos para a profundidade. Só existe o que eles vêem; infelizmente não vão além da superfície. Resultado: os outros, aqueles que mergulham em apneia nas coisas, são apelidados de criminosos ou coisas que tais. Em suma, cegos tentam-nos, por todos os meios, impingir a sua visão.

4) O humor actual transformou-se numa troca de galhardetes.
Como estamos a viver numa época em que o narcisismo dita os nossos comportamentos, tudo o que não vai no sentido do elogio, de nos afagar o ego, é visto como nocivo. Daí que a designação do que é considerado ofensivo cresça de dia para dia. Se a tendência da indignação continuar a arrebanhar temas, chegaremos a um ponto em que a comédia estará restringida ao elogio claro ao outro. Os risos hão-de surgir, mas surgirão como simulacros. Será um riso tipicamente de rico quando, numa festa em que pode lucrar de algum modo, o Homem soltar uma gargalhada falsa a fim de criar uma noção fictícia de proximidade.

5) Lá estão vocês com a liberdade de expressão.
Uma frase muitas vezes atirada aquando o rescaldo de uma piada.
Aos olhos actuais, a liberdade de expressão tornou-se um luxo. Por um lado não há censura, como tanto gostam de propalar os amigos do politicamente correcto, por outro, não se pode sequer mencionar a liberdade expressão. Ela existe. Quem é que existe? Não se pode dizer. Uma espécie de Voldemort.

6) Quem se ri é doente.
Usando um raciocínio análogo ao do tribunal e do juiz, seria a morte dos diagnósticos médicos. Não sabemos se estamos doentes, então pedimos a alguém que nos conte uma piada. Se nos rirmos, estamos doentes, se não rirmos, podemos dormir descansados. E um acrescento de graça: o homem sem posses foi possuído pelo milenar comportamento do rico, o qual sentencia: se não te ris és dos nossos, se te ris és tantã. 

7) A desproporção entre a piada e a reacção.
A piada, por muito má que seja, é uma piada. E é aqui que o faroleiro incumbido de ajudar os barcos da virtude dá um tiro no pé. Ao reagir à piada que detesta estupidamente, deseja a morte ao comediante. É como adquirir uma bomba atómica para matar uma mosca.

Uma última palavra aos agrimensores da piada: amor. Desejo-vos tudo de bom. Não estou a ser irónico. Não desejo mal a nenhum de vocês, nem à vossa família, nem tão-pouco que os vossos cães morram da forma mais cruel possível. Não desejo isso a ninguém, mesmo que sejam indignados profissionais.

 

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Roberto Gamito

13.07.22

Na escrita, atiro carne podre aos vindouros. Formulei, para uso caseiro, tempestades e incêndios, vandalizei máscaras e escoei venenos. 
Numa das minhas mãos habitam um sem-número de roteiros de desorientação. Vasculhei dentro de mim — reconheço hoje o equívoco — uma família de mapas novinhos em folha. 

Os caminhos alimentam-se de passos, a jornada cresce com o nosso desnorte. 

A mulher suspira, como é usual em muitas histórias. Sabe-se pouco a respeito das entrelinhas da respiração aflita. O talento da respiração é fintar repetidas vezes a morte. 

A senhora de noventa anos descobre que a filha tem Alzheimer. Em minutos perdem-se todas as certezas da última década. 

Cabisbaixo, o meu rosto despenha-se do céu, qual Lúcifer, nas poças de água. 

Rasto cifrado para ludibriar hienas e perdigueiros, passos tapados por folhas, apeadeiros em chamas. Ulisses anónimos com a água das lágrimas a dar-lhes pelo pescoço. A vida a centímetros da morte. 

Toda a gente acorda de manhã como que vinda de um milagre, hesitante, um pouco espantada com mais um dia. Não era esta a imagem que tínhamos do inferno. 

Um ponto. Não há lugar para os pés nem para as mãos, nem tão-pouco para deuses. Encolhemo-nos até ao esquecimento. Novamente nesse ponto primevo, o antes-de-tudo-o-que-conhecemos-e-ignoramos. 

As coisas libertam-se do seu nome emperrado graças ao grito. 

Vencidos os homens, sobram umas migalhas. As sementes preparam uma rebelião há séculos no rés-do-chão do sangue. Até lá sobram-nos as histórias. As línguas despem-se de palavras ao rés do rosto amado. A mão percorre ao de leve o rosto como a brisa a cevada. O seu cheiro invade os campos da minha imaginação.  

A sua verticalidade é postiça, porque teme soltar o animal na escrita. Este alarde a que não falta fanatismo actua como um holofote, elevando o espantalho a celebridade. 

Amor, Deus, morte. A respiração de civilizações inteiras ecoa dentro de certas palavras. 

O falcão olha de cima o labirinto do Homem e confunde-nos com formigas. Agora vamos por aqui: engaiolar na mão a recém-cortada cauda da osga e ver na sua movimentação vã a humanidade. 

A morte, assim como Deus e o amor, é uma semente, está no meio de nós. Envelhecemos por aí, à procura do perdão. 

 

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Roberto Gamito

08.07.22

Se alargas os braços desencadeia-se uma estrela de mão
- Herberto Helder
 
Já não ganho para a côdea, vivo à base de laranjas.
- Anónimo numa pastelaria algarvia
 
Preenches os buracos da árvore do conhecimento com a respiração aflita. Ofereces, ao mundo então escancarado, sem que a magia interfira, uma longa dinastia de gritos categorizados por épocas, credos e cor. Sem que o saibas, edificas o mapa da dor humana.
Na arte, és uma deidade tardia aprisionando uma estrela armada em coração entre as mãos. A estrela, que amanhã será palavra mansa poisada na folha, recusa-se a entrar na frase. Que trabalho te calhou em sorte, ó miserável!
É sempre a mesma coisa: antes de ingressar nas linhas, as mortes evitadas por sorte ou engenho aproximam-se em bandos de muitas e iniciam a dança de Shiva — a da destruição — em torno da minha cabeça, descrevendo órbitas excêntricas, abalroando satélites e planetas e estrelas que garantiam a estabilidade desta criatura assustadiça todavia vertical.
Noutra divisão da casa da biografia, o coração é arrancado de supetão pela coreografia adiabática da amada. Um passo atrás pode apunhalar um homem apaixonado no coração. A ideia de reverter a situação percorre os interstícios dos episódios vizinhos qual cobra sem cadastro.
É um crime ficar a meio na estrada do amor. Para onde ir se o meu norte se evaporou?
Doravante o caminho é um ziguezaguear sonâmbulo entre precipícios e fojos. O ouro das antigas palavras revela-se pechisbeque — o eterno amor oxida-se, revelando a farsa.
Carne arrefecida pela dor, metal exótico ao qual as chamas jamais ensinarão novas formas.
Infância, fera de mil caras, paisagem que nos assombra e abocanha por dentro com uma miríade de engodos, réplicas baratas de quadros fabricados pela hilariante memória, a qual é incapaz de conservar na íntegra seja o que for.
Se recuássemos uns aninhos, não teria pejo de pronunciar esta frase: "As tuas mãos cercam-me em sonhos, eu ardo qual cidade prestes a ceder às investidas dos bárbaros. "
Uma constelação de buracos negros estrangulada pela memória — o ataúde de Deus. Dentro de mim há um sem-número de génios engarrafados, ansiosos por trazer a morte ao seu salvador. Qual destas ideias me trará a morte?
Julguei, reconheço hoje a ingenuidade deste pensamento, que a vida acabaria por me conduzir a uma clareira no interior desta floresta negra inescapável, que é como quem diz, um princípio de entendimento. Tenho feito os possíveis para exorcizar os becos da vida. O quotidiano, outrora amigo, converteu-se num demónio de alto coturno. Vejo guilhotinas em todas as esquinas. Não sou senão uma marioneta nas mãos do meu demónio, eis a primeira revelação. Seguir-se-á, nem que seja num sonho ou num pesadelo, a emancipação da marioneta. Não será tarefa fácil. Ao cortar aos fios com o hábito, vou ter de reaprender a andar, de sair bípede pelo meu próprio pé desse entulho de ossos, pele e farpela que é a vida nova. Erguermo-nos das nossas sobras sem a mão vinda do alto não é isento de perigos.
Volta e meia regrido na metamorfose e regresso ao casulo. A sós com a minha respiração, reconheço que a escrita é som e fúria, o passado ebuliente posto por extenso. Não há como amansar a mão inspirada em Tifeu sem derramar sangue divino.
Repara bem no Homem que está à tua frente. A respiração resgata o labirinto do mundo interior, denuncia-o em todos os seus pormenores. Repara bem como estamos perdidos.
 
 

Emancipação da Marioneta


Roberto Gamito

05.07.22

Se não houver laivo de generosidade nos teus actos, principiarás a emular a coreografia de um pequeno tirano. O narcisismo é um viveiro de déspotas em princípio liliputianos, o smartphone um espelho. O espelho, afinado minuto a minuto pelo algoritmo, está sempre lá. Espelho meu, espelho meu, há alguém mais interessante do que eu? Ao contrário do célebre espelho, este não cairá no erro de dizer a verdade.
Estamos todos tão apaixonados pela ideia de que fomos entronizados pelos likes e comentários que não nos apercebemos que, dia após dia, cultivamos uma sociedade de regicidas. A empatia dos novos tempos é a ficção suprema.
A internet é uma corrente ingovernável de versões de uma única biografia oca, na qual todos os episódios não senão simulações, uma tempestade ora subtil, ora escancarada na primeira pessoa. As confissões parecem saídas da cabeça de um opiómano. O padre ou o terapeuta só tem o direito de aquiescer.
Deixas bem-intencionadas resvalam, naturalmente, para o inescapável empoderamento do eu.
Tudo é acerca de ti, um conflito bélico no oriente, uma sonda espacial lançada para o cu de Judas, a morte de alguém mais ou menos célebre, o lançamento de uma engenhoca inédita que na próxima semana ficará obsoleta, uma ideia papagueada sem vigor por este ou aquela marioneta. Sem querer, maquilhas cadáveres e ideias coxas para aumentar o engajamento.
Enterras a morte em maquilhagem até que a morte não se assemelhe a ninguém.
És um incendiário oportunista. Esqueces-te do essencial: o fogo não tem senhor. As faúlhas dessas conversas frutíferas para o teu ego saltam sem que te dês conta para temas inofensivos. O Eu semeia faúlhas em todos os pontos de vista. O Narciso é o agricultor do Apocalipse cheio de boas intenções. Não espanta, o desejo do Eu é a aniquilação. Será isto aquilo que Freud chamou de suicídio inconsciente?
"Lembra-te, pois, de onde caíste e arrepende-te", eis a voz tonitruante vinda do Livro do Apocalipse. Numa sociedade excruciantemente positiva, a queda foi abolida ou mascarada.
Mergulhando no seu reflexo com a botija de oxigénio da gratificação instantânea, o Narciso escreve às escuras propostas para mudar o mundo, recauchutando-as dia sim, dia não consoante o vento mais em voga para que tudo arda sem entraves.
 

Internet, a caudalosa biografia do Eu


Roberto Gamito

04.07.22

Sou muitos. Ignoro se é por escrever uns versos nuns manjericos invejosos da proeza da sarça ardente, se é pela obesidade. Sou muitos elevado a muitos. A hipérbole é uma coisa maravilhosa, lá estou eu a exagerar novamente. Tu não estás no teu juízo para me chamares humorista, ó parceiro de balbúrdias nocturnas. Estavas a falar com quem, questiona o demónio? Entrementes, dançamos em cima das musas, somos rãs furibundas improvisando nenúfares em cadáveres.
Isto não é talento nem génio, é um bárbaro sem seita à cata na folha do sangue mais ebuliente. Não paras quieto, diz a mulher ao homem, os quais estão numa relação aberta, parece que a tua picha anda em tournée. Saíste-me cá um artista disse a mulher ou o Alberto Pimenta em A Arte de Ser Português.
Aproveitemos a embalagem, o chamado movimento, para mencionar um rol de episódios que, pela sua baixa estatura no tocante à tragédia, não seduz as gordas dos jornais.
O conta-gotas mudou de nome para alguém-que-conte-as-gotas. Expectável, vivenciamos a Dinastia do Literal.
Diante do bacalhau encalhado nas margens da sedução, isto vi eu num guardanapo desprezado e resolvi repescar para a nossa prosa, o pénis entesa-se, prestando uma sincera homenagem à expressão "teso como um bacalhau".
Eis uma nota de rodapé que foi censurada pelo censor ou editor (o epíteto depende da escola): Mamas santas, gabadas até ao delírio pelos incréus, até em dias de pôr tudo em causa.
Círculos imaginários ou mesmo reais onde dispomos estúpidos, sujeitos maleáveis, contorcionistas da retórica mais em voga e inteligentes nas suas órbitas, vozeia o porta-vez da Guilda dos Vinte e Seis. 3 mil milhões amocham em uníssono com a palavra justiça entalada na garganta.
O drama encrencou quando Deus desceu à terra num dia de folia na aldeia e disse: "Eu, se vim ao mundo, não foi para fazer amigos, foi para encher o bandulho. O céu é tão sem sal que, se não fosse imortal, já me teria suicidado. Marimbei-me para a omnipresença, como isto está, já não estou bem em lado nenhum."
Ó burros insuperáveis, ó pais e filhos do pó, ó homens entretidos a dispor os pequeninos e os gigantes em hierarquias delirantes, vamos lá ter calminha. X., retratado à época como caduco e, postumamente, elevado a pai de mil autores, sofreu horrores às vossas mãos. O vosso cérebro ausentou-se? Ter chegado ao meu destino atempadamente, continua Deus, logo no primeiro segundo, faz-me sentir perdido. E o burburinho ininterrupto das vossas preces não ajuda. Há quanto tempo o silêncio não faz parte do vosso léxico?
Voltemos costas ao espectáculo e à guilhotina, voltemos costas ao Eu, voltemos costas à morte. Digo-vos uma coisa, os contadores de histórias estavam certos este tempo todo. O poder priva quem o detém da capacidade de ver. A criação cegou-me.
E se o sangue dos sacrifícios em nome dos deuses arcaicos não fosse para matar a sede, mas tão-somente para entretenimento das Parcas?
Seja como for, a inflação enlouquece poetas e artistas sem voz. Desmanteladas as paisagens luxuriantes, há vates à cata de sobras de beleza num frigorífico. A informação soterra milhões de miolos todos os dias. Se dói é porque é para ti. A tortura foi concebida especialmente para ti. A paz não interessa a não ser em reclames. "Quem come agitadamente come mais depressa." O tempo entre garfadas mede a saúde da democracia de um país.
 

Tempo entre Garfadas


Roberto Gamito

04.07.22

Desloquei-me da sala até ao frigorífico. Estava bom tempo; lá fora chovia. Levei apenas uma muda de roupa, a que tinha no corpo. Umas calças de pijama com uns flocos de neve, oferecido pela minha avó, e um casaco velho da nike vermelho a dar as últimas, nada de muito vistoso, se excluirmos o plano do ridículo. Viajei como um indigente. Queria evitar os olhares curiosos dos autóctones, leia-se família: só o que me faltava era ser assaltado com perguntas a caminho do frigorífico. A viagem foi rápida mas sentida, não deu para tirar fotografias, nem para actualizar redes sociais, nem para ouvir a nossa música preferida que escutamos somente quando vamos de viagem. Tentei viajar o mais incognitamente possível. Detive-me numa estação de serviço apenas — a minha casa de banho. Fiz aquilo que as pessoas normais fazem nas casas de banho. Aliviado, rumei em direcção ao frigorífico. Era tal qual a imagem que eu guardara na memória. Talvez um pouco menos brilhante, com uma mancha de ferrugem aqui e ali, que os fotógrafos de merdas a cair aos pedaços achariam engraçado fotografar a preto e branco. No centro da cozinha, uma mesa encimada por uma fruteira, a escassos metros o frigorífico. Fitei a fruteira, só fruta. Afaguei um pêssego. Não, não era fruta que me apetecia. Respirei fundo e abri o frigorífico. É sempre uma surpresa. Em verdade, regresso sempre ao frigorífico, é a minha Paris. Já fui feliz, já fui triste. Pilhei-o segundo os ditames da minha fome. Dois rissóis, um de camarão e outro de leitão, este último com uma ferida por cicatrizar, com sangue de rissol a escorrer-lhe da dita, um iogurte líquido com dois sabores, caramba, não há a porra de um iogurte líquido com apenas um sabor, uma linguiça, um naco de presunto, um trecho de queijo... Um bocado de repolho — não, isso ficou. Eu sei que pode parecer exagerado, mas é melhor prevenir, evitamos viagens desnecessárias. Era tempo de voltar. Fui com o saque até à sala. O meu irmão olhou-me fixamente e disse: “Trouxeste alguma coisa para mim?” Ao que eu respondi "Não trouxe lembranças para ninguém.” E enchi o bandulho.

 

Fui ao frigorífico

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