Roberto Gamito
06.12.20
O assobio é, provavelmente, a manifestação mais indubitável de alegria. Não há, à excepção dos loucos, quem consiga assobiar e estar triste ao mesmo tempo. Se, ao dialogarmos com alguém que nos é próximo pararmos o assobio para falar e perdermos a vontade de o retomar, o melhor é assumir que a alegria nos abandonou.
O outro espatifou-nos a boa-disposição. Caso aconteça com alguma frequência, devemos estar preparados para intervir com um “não me interrompas o assobio, deixa-me ser feliz”.
Não precisamos de nos sentir culpados pelo outro não ter alcançado um patamar de alegria que o permita assobiar.
Mais humanamente, o gatuno de assobios está a pedir ajuda. Sob a sua negatividade implacável e tentacular, de uma forma deturpada, selvagem e amiúde enlouquecedora, implora por ser ouvido. A discussão pode principiar abruptamente.
— Não há motivos para assobiar.
— Quem és tu para me dizer quando há motivos para assobiar?
— A pessoa que vive contigo, mais precisamente a tua mulher.
— Cara colega de casa, estou a homenagear as pequenas coisas da vida. A vida é demasiado bela para não ser celebrada.
— Dá-me exemplos.
— Ter encontrado uma pessoa com quem passar o resto da minha vida. Uma casa estupenda. Os dois filhos.
— Estás equivocado em toda a largura da tua resposta. Nem eu sou essa pessoa, só de olhar para ti dá-me vómitos, nem a casa é assim tão espectacular. Onde vivemos pouco dista de uma barraca. Os cães não são teus filhos.
— Sinto que me queres dizer alguma coisa. Queres falar?
— Estás a ver coisas onde elas não existem, porém acho um exagero essa manifestação de contentamento. O mundo não está para grandes sorrisos.
— Tens motivos para estar triste?
— Mas agora é preciso motivos? Aliás, nem estou triste, estou apenas a constatar factos. Casei-me com um palerma.
Cessa o assobio e o outro, que iniciou a discussão com o tom azedo, ri-se pela primeira vez. E começa a assobiar.
Felicidade flutuante, amigos, felicidade flutuante.