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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

12.11.22

A narrativa tem molde de sarcófago mutante. A sede do outro propõe-nos negociação, algumas soluções finais, a saber: um directo para as redes sociais com a morte, em que cadáver e Ceifeira sorriem para a câmara. Mercadejemos, meus irmãos ontem verticais, o inferno inesgotável, à revelia do Canhoto. Recuemos uns milénios, decapitemo-lo, ao Diabo, mas primeiro urge lavar as mãos, seria uma pena contaminar a cabeça do chifrudo com as nossas noções de paz. De seguida, espero que estejam a acompanhar a receita, diz o bárbaro-poeta cuja mão canora, feita machado, é um poema de Kaváfis, pousem o cérebro nas placas de argila, no papiro, no pergaminho, no papel ou no ecrã, é à vontade do freguês.
 
A interpretação é uma farsa, uma ficção suprema, mas é tudo o que temos.
As coisas como são
mudam na viola azul, traduz Wallace Stevens.
 
Esquecendo os comediógrafos afogados pelos alvos das piadas, esquecendo o rígido Platão, e o mais maleável Aristóteles, descartando o nado-morto que foi a Comédia Nova de Menandro, sublinhando a bufonaria dos banquetes, Aristófanes que soube dançar ao rés do cadafalso, Demócrito, o sábio, cujo riso desorientava os medíocres, ou respeitando o apodo da altura, o hilário de Abdera, que apoucava tudo e Heráclito, o chorão de Éfeso, que dramatizava tudo, qual activista à frente do seu tempo, sobra-nos a relação tensa entre o riso e a lucidez. Eis-nos chegados ao núcleo.
 
O comediante encontra na folha a sua harpa, mesmo no arengar dos seus engodos. A hipocrisia colectiva não é senão uma sinfonia de iscos. A arte, que há dias tornava o fardo suportável, escapou-se-nos entre os dedos, doridos de tantos afagos. Acariciar o ego alheio com vista a saltinhos na hierarquia ficcionada tem o seu preço. O coração rufa como um tambor nas mãos do amador. O discurso apinhado de alíneas, o paleio pós-moderno, armou uma cilada às crianças aperaltadas de adulto. A má-fé, erva daninha que armadilha o diálogo antes da asfixia. Agrimensor ébrio do seu próprio eu, eis o retrato do homem contemporâneo.
 
Enquanto arranho o assunto, recordo-me de Luciano de Samósata, que ressuscitou o riso triunfante vindo dos deuses, o riso enquanto dialecto do caos. A liberdade tornada som.
 
Platão nunca perdoou Homero o riso inextinguível dos Deuses. Por conseguinte, vingou-se em levas de rabugice da poesia e da comédia. Não me espantaria nada se se descobrisse que há dedinho do filósofo sisudo no desaparecimento da segunda parte da poética de Aristóteles. O sorriso é neto de Platão. Uma das suas maiores conquistas.
 
Durante uma das muitas incursões às profundezas do eu, esse grande império povoado de fantasmas, esse abismo sem pés nem cabeça, recordei-me do riso selvagem de Luciano, de quem se disse tudo, excepto coisas boas. Luciano, o humorista supremo, que troçava de tudo, superiores e inferiores, era bordoada de três em pipa que era uma maravilha, e nem os deuses escapavam. Para alguns, Luciano era filho do diabo, de tantas vezes que entrou e saiu do inferno. Aquele riso não podia ser humano.
 
Romantizam-se os colhões, argumentará um discípulo de Menandro. Face ao monstro cujos barrocos cacarejos se destinam a domesticar o riso, a reduzi-lo a mais um traço de um rosto maquinal, necessitamos que o dinamite faça das suas na arte do parasitismo, é a única solução. Como disse o outro, filosofar com o martelo. Sei que custa engolir, mas a confusão nunca será resolvida com um refrão, ó fantoches do eco.
 

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Roberto Gamito

09.06.22

"Não é o homem que cai que ri da sua própria queda, a não ser que seja um filósofo, um homem que haja adquirido, por hábito, a força de se desdobrar rapidamente e de assistir desinteressado aos fenómenos do seu eu."
- Baudelaire
 
Permita-se-me uma achega que me servirá para mesclar algumas coisas que, na clandestinidade, tenho tentado irmanar.
Vou fazê-lo muito de passagem e por conseguinte não estranhem os saltos de raciocínio.
Partilho da ideia de Baudelaire, da proximidade da comédia com a filosofia. O comediante, tal como o filósofo, é aquele que começa a questionar exactamente onde os demais adquiriram as suas certezas. Segundo Baudelaire, e para outros antes dele, o riso tem o seu quê de satânico. Os comediantes são, empregando uma expressão sua, Satãs em flor. O comediante é uma espécie de agrimensor que tenta decidir, pelo seu próprio pé, qual é o território do bem e do mal. Ora é um trabalho que, a ser bem feito, carrega os seus perigos. A dose faz o veneno, e o comediante quer sempre mais.

Outra ajuda de Baudelaire: "O riso é essencialmente infinito, é sinal de uma grandeza infinita e ao mesmo tempo de uma miséria infinita. É do choque permanente entre este dois infinitos que se solta o riso." Daí as oscilações de humor — perdoem-me a simplificação — características de um humorista. Ninguém consegue ficar imune a tamanha amplitude.
Outra coisa que os comentadores de porcelana se esquecem quando tocam no assunto é a natureza mais funda da arte. A comédia pode ser somente — e tanto universo que carrega este somente — um animal ferido a tentar sobreviver. Opera com o medo, a hipótese possível de redenção. E isso pode ser projectado para o medo em si, ou para algo totalmente distinto.
Eu clarifico: um comediante carrega um medo absurdo de morrer de cancro, então tenta parir piadas sobre esse assunto para tentar a sua vitória de Pirro. O comediante não ignora que essas vitórias são infinitesimais. Nunca vencerá a morte, que tanto o amedronta, nunca vencerá os seus medos, nunca vencerá nada. Mas isso não o impede de experimentar tudo o que estiver ao seu alcance para obter essas "vitórias fictícias" sobre a morte. Pode, como atrás mencionei, ter medo de morrer, e projectar esse medo em piadas sobre cadeiras; o medo estará presente na fúria e no olhar com que debita a piada, por exemplo. A sua relação com o medo move-se nos meandros da piada aparentemente inócua. O riso é a libertação da sua cólera e do seu sofrimento. Como a dor não passa, precisará sempre de mais e mais risos.

Façamos agora aqui uma pequena ponte, pois é de suicídio que iremos falar. E sim, a frase anterior está envernizada humoristicamente, pois esta é a forma de abrandar o poder da morte.
O suicídio, no tocante a quem procura o riso no outro, frise-se procura o riso no outro, é quando o laracheador se dá conta do exercício inútil que é tentar a redenção através desse método. Observem a recorrência do verbo tentar. É uma tentativa perpétua. De se livrar da dor — particularmente a depressão — que é invencível. Nunca é extinta, quando muito adormece.
Faça o que fizer, continuará o mesmo. Quando esta ideia lhe surge clara na mente, então, meus amigos, é normalmente o fim.
Mas regressemos ao primeiro excerto.

O desdobramento — uma espécie de projecção astral, para piscar o olho a quem viu o Doctor Strange — é só uma forma de entre muitas formas de ver, de comunicar com aquilo que está a acontecer. Há o perigo de nos afastarmos tanto que doravante tudo nos parecerá igual. É nas imediações do acontecimento que podemos aceder aos detalhes. Longe, por si só, não tem grande valor. É um artifício usado em metaconsiderações quando se pretende discorrer de um assunto de uma forma que ofereça menos propostas de retaliação. Então cria-se um assunto sobre o assunto, e assim sucessivamente, dependendo do medo do comentador.
Esse distanciamento barroco, curioso exercício de estilo, é a forma natural de exibir uma erudição postiça, muito comum nos dias que correm. É possível pairar bem alto sobre um assunto, qual falcão, todavia tem de chegar o momento em que o falcão inicia a queda vertiginosa sobre a presa — aquilo que realmente interessa. Ora ver de fora só tem sentido se houver a intenção de voltar a entrar no circo — naquilo que lhe causou uma perturbação — com novas abordagens, novas ideias, novo fôlego.
E mais: isto — a comédia e a filosofia — dificilmente acaba no eu.

É mais o que está para lá do eu. Tal propensão pode gerar um cardápio de leis só aplicáveis ao seu eu, todavia desajustadas ao mundo real. Pode igualmente embeiçar-se pelo seu eu — ei-lo, o mundo polido dos Narcisos.
A rapidez com que o realiza pode ser igualmente problemática. Há que deixar o veneno actuar, se quiserem realmente arrepiar o tecido da realidade. A não ser que seja só um comediante ou filósofo de superfície. É preciso deixar que o mundo entre em nós, que se entranhe. E para tal necessitamos de tempo. Daí o estado actual da comédia, por exemplo. Não pensa, reage, mas isso são outros quinhentos. O olhar desinteressado não é tão benigno como se afigura à primeira vista. À medida que o tempo corre, se o comediante se aperfeiçoar nessa forma de olhar o mundo, dar-se-á conta que tudo é igual, sem sabor, sem cheiro, que nada lhe suscita interesse. Outro itinerário para alcançar o suicídio.
Parece que Baudelaire não leu o que escrevinhou. Noutra altura escreveu que a arte, a ser arte, tem de ser parcial.
Assim já nos entendemos, senhor B. E só nos podemos comprometer com o amor. Quiçá por aí dê para o comediante se esquivar à depressão e ao suicídio. Vale a pena tentar.

O compromisso eterno com aquilo que nos promete a salvação.
Escrever como se cada frase tivesse o poder de mudar o mundo. E insistir, insistir até partir os braços e ficar afónico.
Volta e meia desdobramo-nos até à loucura, e somos o coliseu, um homem inerme a lutar com a fera, o público, cada elemento com as suas nuances, o imperador. Somos uma legião, cada um a lidar de forma distinta com a morte. Num só instante podemos morrer, aplaudir, rir, matar, sofrer. Essa é a natureza do combate interior. O Homem é múltiplo. Mesmo que o esventres até ao átomo, nada saberás sobre ele, não sabes os seus apeadeiros da queda, que lutas travou, o seu portefólio de derrotas. Nunca conhecerás um homem —
mulher — a não ser que a ames. Nunca conhecerás o que é a comédia — a filosofia — a não ser que a ames. O amor, esse, deve ser o ponto de partida para tudo. O único dogma. A tua Ítaca, se preferires. Quando se sentires perdido, tenta regressar.

Mas calma, não se levem demasiado a sério, somos todos personagens risíveis. Soa estranho, não é?

Humorista, o Satã em flor


Roberto Gamito

09.12.21

No riso, a dor desaparece. No fundo, o humorista aproveita a surpresa para se enfarpelar de médico e prescreve uma breve ficção apinhada de solavancos. A criação de uma situação cómica como meio terapêutico. Após este ritual, podemos retomar os nossos afazeres de Homem esfarrapado, isto é, permanecer vegetando numa viciante dependência de entretenimento e outras formas de ópio.

Sofro, logo existo, eis a marca do Homem contemporâneo. A dor é a prova de que estamos vivos. Não é uma dor qualquer, é a nossa.
Quais Napoleões tardios, surgem os açambarcadores das dores alheias.  Mais dor, mais dor!
Se adoptássemos a ideia de que o sofrimento é o melhor professor, estaríamos diante dos alunos mais empenhados.
No entanto, a dor, que amiúde torna homens verdes em homens precocemente maduros, tem o condão de obstaculizar o pensamento.
A dor é a legenda do corpo. Cinicamente falando, na dor o homem é livre: ninguém me pode impedir de sofrer, eis um raciocínio de um ser desocupado.

A dor suspende o pensamento. Na dor, o outro desaparece. As palavras afiguram-se rombas, são incapazes de descrever a dor. O grito enquanto dialecto do corpo, dos ossos e da carne. Só o lado animalesco — o grito — é capaz de dizer a verdade. O grito enquanto poesia intraduzível.

 

Grito, Dor e pensamento, Roberto Gamito

 

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