Roberto Gamito
15.12.20
Somos os herdeiros extravagantes do século XVIII, época charneira no tocante à sociedade de consumo. À data, a explosão de bens de consumo ocupou várias mentes ilustres como por exemplo Rousseau.
O problema resume-se à escolha entre, por um lado, o consumo decadente e a riqueza, e, por outro, o despojamento virtuoso e a pobreza. Rousseau defendeu a virtude, postura estranha se vista à luz do nosso século.
Numa leitura mais apressada, diríamos, como Alain Botton, que esta questão já não é pertinente. No entanto, a nossa relação com a riqueza e a virtude tumultuou-se. A nossa noção de virtude sofreu várias metamorfoses. Para alguns de nós, ignoro se uma parte insignificante, seria óptimo chegar a uma espécie de compromisso entre o conforto e uma certa postura ecológica que nos deixe dormir à noite sem pesadelos. Bastas vezes esse compromisso é tão-somente um paliativo. À superfície é uma virtude, na profundidade, decadência. Ou seja, uma virtude falsa na medida em que estamos, mais uma vez, mais preocupados connosco do que com o mundo que nos rodeia.
A questão que preocupava Rousseau continua a preocupar-nos, embora continue sem resposta. Existe alguma forma de amenizar a voragem do consumo com as suas consequências?
Uma forma simples de perceber a que ponto estamos obstinados em querer legar um mundo melhor aos vindouros é responder a esta pergunta simples: conseguimos comprar produtos que não sejam disparatados?
Embora não seja bonita, a forma como o capitalismo se desenvolveu até aos nossos dias dá uma imagem muito realista do Homem. É inegável que o capitalismo é a máquina mais capaz que alguma vez construímos para satisfazer as necessidades humanas.
Essa é a fachada do capitalismo. Se virmos as traseiras, temos o lado negro: uma máquina de gerar abismos. Que é como quem diz, enquanto estivermos apardalados a vistoriar montras não haverá problemas de maior.
Não deixa de ser curioso que o grande salto do capitalismo foi quando enveredou para a produção de coisas desnecessárias e disparatadas. No cerne da revolução consumista há algo que se mantém até hoje: querer parecer mais do que os outros. Entretanto, como seria de esperar, a feira de vaidades aperfeiçoou-se. Aquilo que antes era visto como disparatado ou inútil arranjou forma de se legitimar. Os mil ardis do capitalismo não cessam de surpreender.
O ego que se pavoneia postula o inútil como indispensável.
Metafisicamente falando, o consumismo desenfreado é a fuga sublimada. Fugir de nós mesmos sem nos tornarmos nómadas. Adiar o confronto connosco mesmos indefinidamente. Comprar, comprar, comprar mais, seja neste mundo, sejas nos mil mundos virtuais até nos esquecermos de quem somos.
Aos olhos de alguns, é normal que tenhamos chegado a este estado. Se visto pelo lado mais pessimista, ou realista, como dirão alguns, o Homem é apenas uma cópia do rei Erisícton, presente em Metamorfoses de Ovídio, o rei vertiginosamente guloso que, ao violar a natureza, foi amaldiçoado pelos deuses com um apetite incontornável e se devorou a si mesmo.