Roberto Gamito
30.06.21
Não gostei da atitude da divindade. Encarreguei um amigo mútuo de comunicar a minha decisão ao númen da forma mais amistosa possível, dizendo-lhe que tinham surgido perturbações insanáveis na nossa relação e era impraticável continuarmos amigos. E foi esse momento que fez a luz desabrochar.
Fui assaltado por recordações dos velhos tempos, tempos deliciosos em que as horas passadas a conversar sabiam a pato.
E agora, quaisquer que sejam os intérpretes que venham a contribuir para esta mixórdia de chatices, permitir-me-ão que me gabe que eu, pelo menos, segui a minha vida como se nada fosse. Ênfase no nada.
A propósito: como alguns leitores são mais lentos de miolo, posso também dizer-vos que isto mudou a forma como eu me relaciono com o mundo. Antes de tomar a decisão de pôr termo a esta relação espinhosa, consenti que o azedume tomasse conta de mim. Por esses dias era comum ver-me no campo a dar pontapés nas flores, como que me vingando na obra perfumada do Criador.
Isto é sempre a mesma merda, diz um beduíno ao deserto. O camelo aproveitou a pausa para esvaziar a bexiga. A sua pequena contribuição no sentido de transformar o deserto num oásis.
Tal ofensor é, no que à etiqueta diz respeito, um palhaço extremamente enfático e inútil. O deserto manteve-se imperturbável — está feito um adulto. Em tempos não muito recuados, ter-lhe-ia brindado com uma tempestade de areia capaz de lhe pôr os olhos a pedir perdão.
Prostituta: Metia-a na boca com tanta elegância, que acabei por lhe conquistar o coração. Chorei quando me contaram, sou um romântico intratável.
A única inovação que admitia na escrita era o estilo avalanche, ao qual se entregava com grande entusiasmo. O objectivo: soterrar de supetão o que há pouco se pavoneava.
Embora não seja preciso especificá-la de tão óbvia que é, a moral desta história é que há uma caterva de coisas desagradáveis que, em sociedade, somos obrigados a engolir. A sociedade, deuses inclusos, é um monstro de mil e uma pichas ávidas de ejacular na boca dos acocorados. Saltemos então de picha em picha de molde a assegurar a continuidade da nossa cabeça.
Já que assim é, façamo-lo com um sorriso.