Roberto Gamito
18.09.22
A isso se designa destino.
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Roberto Gamito
18.09.22
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Roberto Gamito
12.07.21
Não te esforces por ser meu leitor, deixa-me tal como estou: carne pendurada no gancho. Se vês em mim as sobras do naufrágio, não me lances a bóia, tinge antes o oceano de sangue e os tubarões farão o resto. Mais não mereço que um desfecho a várias bocas. Ando às voltas qual compasso furibundo que tenta legar ao mar uma circunferência. Devo confessar-te que sou um especialista em afogamentos. A minha morte, repetida aqui e ali, no campo ou no papel, não sabe o que é repousar.
Ando de tempestade em tempestade à procura da língua.
Aproveito a minha estadia no fundo para anotar os fragmentos da vida em conchas.
A mão, hoje romba, despiu-se de minúcias. Semente bípede no interior da qual o animal pleno arranha as paredes. O metabolismo acelera à beira do precipício e mina os pilares de uma vida longa. Para seduzir as pequenas coisas não nos podemos pôr de bicos de pés.
A máscara alastrou contaminando o teu repertório de gestos. Um olhar gritante, em maiúsculas, que é como quem diz, caricatura de terra ressequida. Dói-me ser o exagero de ontem. Quando a minha língua fértil era hábil em encurtar distâncias, nada cumpri que o esquecimento não possa obliterar numa primeira passagem. Mesmo no auge da solidão, nem de rosto precário à mostra, com as mãos todas à disposição, sou incapaz de vivificar o teu nome sacro. O caminho é uma legenda prolixa de uma queda que há-de vir. Sei de cor os apeadeiros onde fui ultrapassado pela vida. Ao princípio era o advérbio. O modo, a afinação enfadonha de um verbo impontual. Penso que o eclipse nos habituou mal em virtude da sua duração. É natural que me sinta aborrecido pelas profecias, principalmente aquelas cujo fito é ver-me pelas costas. O deserto é o celeiro das sementes da solidão. Nada devemos esperar de verde. As águas salobras da depressão, o suor a pique da ansiedade. Caí em todos os engodos como um magistral parolo. E por isso não me perdoo.
A escrita é um claustro silencioso apinhado de demónios. Eu preferia um horto onde pudesse plantar corações. No fio da navalha: onde afinal vivemos os melhores anos. E era igualmente aí que mergulhávamos, quais funâmbulos suicidas, sem rede nem ficções de amparo. A solidão fez com que os cachalotes nos invejassem. Mergulhávamos nas nossas vidas — as sobras barbarizadas pelo passado — para virmos à superfície meses depois. Destemidos, aprendemos a ir ao fundo sem esperança nem oxigénio. Habituamo-nos a esses lugares destituídos de deuses, digo, onde a luz não chega. Jurámos sepultar esses ensinamentos na memória até ao último dia, acreditando assim acabar com a própria ideia de suicídio. Fugimos ao Diabo pelos atalhos engendrados pelo Caído. Íamos às bifurcações mais célebres a fim de perceber se ainda éramos Homens. O peso da decisão obrigar-nos-ia a romper os fios do bonecreiro. Caíram que nem patinhos, ria o Homem dos Robertos.
Pobres coisas dispostas por fantoches embriagados. Os fios projectam uma sombra a que chamámos liberdade.
Quantas vezes terei de ouvir a tua distância sem conseguir cantá-la? No dia que estiver frente a frente com a morte já nem sei bem o que fazer.
Roberto Gamito
28.01.21
E se agora, na desordem da minha mente, ao contemplar de forma animal uma mulher, me metamorfoseasse em poeta? De costas voltadas para a minha biografia, dou comigo a afirmar: Não há mulher, não há animalidade na visão — mas já houve, os livros não me deixam mentir —, não há nada — apenas uma selvajaria postiça ao sabor da respiração, melhor dizendo, uma embriaguez vazia, sem pés nem cabeça à qual o temor e tremor, a morte e a vida, os limites da mão, fazem as vezes das musas, hoje cadáveres destroçados. Viro os meus pesadelos uns contra os outros e assisto, de olhos fechados, à matança.
O coração nunca é uma casa, é um estaleiro naval onde a memória coordena as entradas e saídas dos nomes.
Nesse lugar de chegadas e partidas, assolado pelas mais altas fantasias, que é como quem diz, no limiar da razão, aquele que reflecte no porquê da respiração acelerada descobre que já não há futuro. Trânsito de navios-fantasma, fora os nomes que à época eram prementes e se afogaram no esquecimento entretanto.
A paixão abre à minha frente um cadafalso que me atrai e é familiar. Preparo-me para a morte como das outras vezes: coração nas mãos, cabeça no cepo.
O artista é aquele que espera enquanto foge. É um simulacro de pensamento, típico deste século a cair aos bocados.
Como escreveu Georges Bataille, é necessário ter coragem e teimosia para não perder o fôlego.
Sem ar nem vida
cheguei ao teu corpo
noutra língua.
Em sucedendo, mesmo que seja pela via da imaginação, o gemido enfatizador dessa fantasia pode, se alcançado o cume da liberdade, ser o prelúdio de uma obra capaz de vergar estantes.
A simpatia polivalente no mundo dito real (a indignação nas catacumbas) põe certamente em evidência a nossa impotência em nos transcendermos. Olhamos à volta, como um animal apático após matar o rival, sem que nada nos desperte o interesse. Abandonamos o cadáver pondo para trás das costas o acto que lhe deu origem.
Fora da esfera da carnificina, regresso à arena onde as palavras que não disse me mordem e esbofeteiam e cabeceiam. Afinando o quadro para o espectador míope, posso dizer-vos que sou o homem nu ao redor do qual as palavras que fui incapaz de dizer na altura certa — palavras mágicas? — cospem em coreografias de humilhação o meu fado. Os livros, uma vez que se devoram uns aos outros, são de espécies diferentes, de forças distintas. O mesmo sucede com os dias. Há dias capazes de me engolir de supetão, enquanto outros se contentam com carícias.
Não existe, do Homem feliz àquele que é devorado por ideias suicidas, uma relação sincera com o mundo. Inevitavelmente, aos olhos de um sábio, somos crianças embeiçadas por paraísos artificiais, os quais, a cada ano, são aperfeiçoados para que não nos apercebamos da patranha da miragem. De pé ou de joelhos, o Homem, esse simulacro de Atlas, deve recusar-se a ser visto como uma coisa. Nem que dê a vida por isso.
Roberto Gamito
20.11.20
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