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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

18.09.22

No coração dela
quem sabe a morada
derrotado pela vida
de rastos
agarrado de unhas e dentes
ao último sorriso
o homem.
 
Um par de estalos, isso é lá forma de começar seja o que for.
Perto da ermida arruinada, o noitibó inspecciona o teu desespero. Que bico demoníaco vem a ser esse?
 
Fugir do gelo como quem foge ao diabo. Não obstante no início ser sempre melhor, nada melhorará a tua condição de derrotado.
A isso se designa destino.
Tudo há-de recomeçar noutra velocidade
pretextando que já tiveste a tua dose de sorte
tempo para aprender a falhar adultamente.
 
A farpela de bobo com que foste urdindo os posfácios das tragédias assenta-te que nem um casulo. Não podes deixar de reparar que Stańczyk é cada vez mais um retrato do teu desassossego.
 
O palco enfada-te
sonhas cada vez mais com a arena
ó bárbaro reformado pela civilização
sonhas cada vez mais com o sangue
os arquivos inconcluídos da cólera
 
O senhor-cujo-nome-não-cabe-no-poema
matou-se
ao atirar-se para as entrelinhas de um poema
a quem os críticos apodarão de eterno
doravante enjaulado na palavra louco
ainda hoje, caso abram na página certa
vê-lo-ão em queda escoltado
por uma procissão de gritos.
 
O fardo persiste demasiado leve. Urge que o esqueleto desabe
qual explosão meticulosa, tipo edifício outrora magnífico
despedindo-se da sua verticalidade de supetão.
 
Se levada ao extremo, que é como quem diz, às raias do inconcebível, a burocracia é capaz de semear o infinito entre dois passos.
A biografia assoma-se à ponta dos dedos, faz das falangetas janelas. Não me recordo de grande parte da minha vida. Ignoro se fui raptado pelo tempo na infância e devolvido anos mais tarde, velho, rabugento e peludo. Buscávamos nos lábios tresmalhados talvez a intermitente anestesia.
Calma, respirem um pouco, não entrem na odisseia com tanta sede.
 
Repito:
vasculhávamos num mar de lábios
anestesia para o coração
redemoinhos onde a carne
tinha aulas de canto
 
anos depois
a inércia seria um Napoleão
conquistando um por um
os passos ulteriores.
 
Doravante os dias afigurar-se-ão como rituais dedicados à deusa Inércia.
 
Os dentes-de-leão decapitados
pelo sopro inocente da criança
a morte é sempre o desejo
de algo mais, ó suicidas em flor.
 
Já te agrilhoa o exército liliputiano de incertezas. Desejas que esta comédia negra termine.
 
A folha despovoada paralisa-te
qual medusa caseira.
 
Fecha os portões do castelo.
Pendura a farpela de bobo no trono.
Deixa o rei lá fora a ganir
as suas fingidas proezas
que a memória colectiva
há-de carcomer.
 
Sentes o formigueiro de lâminas a percorrer-te o corpo? Ou são antes átomos de esquecimento a colidir nas frágeis aspirações de grandeza, ó meu modesto acelerador de partículas?
 
As metáforas filtradas
pelos razoáveis exegetas
tantos gumes e perfumes
embotados e sem remédio
para que chegassem
às goelas e aos narizes
mais necessitados
sob a forma de animais mansos.
 
Morte para quem dilui a fúria em notas de rodapé.
 
Em todo o caso, a arte — deixem-me respirar, é capaz de demorar, sou asmático — não é o escudo polido de Atena. Seja como for, o que não faltam são Medusas por essas esquinas a petrificar os tomates dos heróis mais espantadiços.
 
Trago a cabeça de Deus na sacola, tenho petrificado legiões de uma assentada. Valeu a pena esperar este tempo todo, o nono círculo só me trouxe coisas boas. De repente, a cidade não nos pertence. Mudaram as pessoas do costume de sítio. Até podia ser uma coreografia de dança contemporânea não estivesse a morte a sondar-nos desde a primeira fila.
 
Cospe para o cadáver divino mais à mão e dá este dia por perdido. Um corpo morto na pista do baile. Coisas que acontecem quando a gente se diverte, diz uma velha.
 
Como me sinto? Estou a trabalhar no centro de areias movediças, evocando a dança da destruição. Garatujo este poema sabendo que vou morrer. Como é que achas que me sinto? Mergulhar na folha é uma viagem sem regresso, uma simulação de inferno.
 
Passaste por mim e não disseste nada. Respondo: sou um neutrino.
 
Enojam-me
os bárbaros
que trocam a arena
pelo catecismo
bobos da corte
com medo de perder a cabeça
mal molham os pés
na margem do inferno.
 
Vai para dez anos que não frito batatas em casa.
Como-as fora, sempre que posso. À parte isto, continuo sem sonhos.
 
Mas querem algo mais ao rés da carne, não é? Não seja por isso.
 
Falámos durante a noite inteira numa língua animalesca, uma que não domino, o amor. Confessou-lhe: querida fêmea, sou analfabeto no capítulo das intensidades, se quiseres saber mais, dou-te o número do meu terapeuta. Ele tem os meus espinhos documentados como deve ser.
Em todo o caso, ela prosseguiu, qual necromante diante do cadáver com o fito de o resgatar ao reino dos mortos.
 
Nada disto tem importância. Seja qual for o mês sugerido pelo calendário, o tempo das colheitas já passou.
 
As avarias do tesão
que as cometas
com ou sem mentiras
com o pau enfarpelado
de bobo da corte.
 
Mas só tenho dois guizos na cabeça, falta-me um, pensará o leitor. Esse rigor será a tua desgraça, digo-te eu.
Mas nem só de foda e amor vive um homem. Segurem-se.
 
Uma das amigas de escola morreu faz vinte anos, recordo-me da sua cara dotada de uma tristeza cinematográfica. Naquela altura ainda não se falava de depressão.
 
Pensaste ter arranjado forma de exorcizar
o demónio perene da depressão
graças aos beijos de uma paixão inesperada.
Coisas de putos, coisas de coração analfabeto.
 
Neste circo
onde palhaços e ursos se revezam
nos números de ilusionismo
da economia global
corte no pessoal
dois terços de mulher afadigam-se
fazem o trabalho de uma inteira.
 
O terço que falta tornou-se descrente nos holofotes.
 
O espectáculo tem de continuar. Cai o pano.
 

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Roberto Gamito

12.07.21

Não te esforces por ser meu leitor, deixa-me tal como estou: carne pendurada no gancho. Se vês em mim as sobras do naufrágio, não me lances a bóia, tinge antes o oceano de sangue e os tubarões farão o resto. Mais não mereço que um desfecho a várias bocas. Ando às voltas qual compasso furibundo que tenta legar ao mar uma circunferência. Devo confessar-te que sou um especialista em afogamentos. A minha morte, repetida aqui e ali, no campo ou no papel, não sabe o que é repousar.
Ando de tempestade em tempestade à procura da língua.
Aproveito a minha estadia no fundo para anotar os fragmentos da vida em conchas.

A mão, hoje romba, despiu-se de minúcias. Semente bípede no interior da qual o animal pleno arranha as paredes. O metabolismo acelera à beira do precipício e mina os pilares de uma vida longa. Para seduzir as pequenas coisas não nos podemos pôr de bicos de pés.

A máscara alastrou contaminando o teu repertório de gestos. Um olhar gritante, em maiúsculas, que é como quem diz, caricatura de terra ressequida. Dói-me ser o exagero de ontem. Quando a minha língua fértil era hábil em encurtar distâncias, nada cumpri que o esquecimento não possa obliterar numa primeira passagem. Mesmo no auge da solidão, nem de rosto precário à mostra, com as mãos todas à disposição, sou incapaz de vivificar o teu nome sacro. O caminho é uma legenda prolixa de uma queda que há-de vir. Sei de cor os apeadeiros onde fui ultrapassado pela vida. Ao princípio era o advérbio. O modo, a afinação enfadonha de um verbo impontual. Penso que o eclipse nos habituou mal em virtude da sua duração. É natural que me sinta aborrecido pelas profecias, principalmente aquelas cujo fito é ver-me pelas costas. O deserto é o celeiro das sementes da solidão. Nada devemos esperar de verde. As águas salobras da depressão, o suor a pique da ansiedade. Caí em todos os engodos como um magistral parolo. E por isso não me perdoo.

A escrita é um claustro silencioso apinhado de demónios. Eu preferia um horto onde pudesse plantar corações. No fio da navalha: onde afinal vivemos os melhores anos. E era igualmente aí que mergulhávamos, quais funâmbulos suicidas, sem rede nem ficções de amparo. A solidão fez com que os cachalotes nos invejassem. Mergulhávamos nas nossas vidas — as sobras barbarizadas pelo passado — para virmos à superfície meses depois. Destemidos, aprendemos a ir ao fundo sem esperança nem oxigénio. Habituamo-nos a esses lugares destituídos de deuses, digo, onde a luz não chega. Jurámos sepultar esses ensinamentos na memória até ao último dia, acreditando assim acabar com a própria ideia de suicídio. Fugimos ao Diabo pelos atalhos engendrados pelo Caído. Íamos às bifurcações mais célebres a fim de perceber se ainda éramos Homens. O peso da decisão obrigar-nos-ia a romper os fios do bonecreiro. Caíram que nem patinhos, ria o Homem dos Robertos.
Pobres coisas dispostas por fantoches embriagados. Os fios projectam uma sombra a que chamámos liberdade.

Quantas vezes terei de ouvir a tua distância sem conseguir cantá-la? No dia que estiver frente a frente com a morte já nem sei bem o que fazer.

Suicida e a Queda, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

28.01.21

E se agora, na desordem da minha mente, ao contemplar de forma animal uma mulher, me metamorfoseasse em poeta? De costas voltadas para a minha biografia, dou comigo a afirmar: Não há mulher, não há animalidade na visão — mas já houve, os livros não me deixam mentir —, não há nada — apenas uma selvajaria postiça ao sabor da respiração, melhor dizendo, uma embriaguez vazia, sem pés nem cabeça à qual o temor e tremor, a morte e a vida, os limites da mão, fazem as vezes das musas, hoje cadáveres destroçados. Viro os meus pesadelos uns contra os outros e assisto, de olhos fechados, à matança.

O coração nunca é uma casa, é um estaleiro naval onde a memória coordena as entradas e saídas dos nomes.
Nesse lugar de chegadas e partidas, assolado pelas mais altas fantasias, que é como quem diz, no limiar da razão, aquele que reflecte no porquê da respiração acelerada descobre que já não há futuro. Trânsito de navios-fantasma, fora os nomes que à época eram prementes e se afogaram no esquecimento entretanto.

A paixão abre à minha frente um cadafalso que me atrai e é familiar. Preparo-me para a morte como das outras vezes: coração nas mãos, cabeça no cepo.

O artista é aquele que espera enquanto foge. É um simulacro de pensamento, típico deste século a cair aos bocados.
Como escreveu Georges Bataille, é necessário ter coragem e teimosia para não perder o fôlego.
Sem ar nem vida
cheguei ao teu corpo
noutra língua.

Em sucedendo, mesmo que seja pela via da imaginação, o gemido enfatizador dessa fantasia pode, se alcançado o cume da liberdade, ser o prelúdio de uma obra capaz de vergar estantes.
A simpatia polivalente no mundo dito real (a indignação nas catacumbas) põe certamente em evidência a nossa impotência em nos transcendermos. Olhamos à volta, como um animal apático após matar o rival, sem que nada nos desperte o interesse. Abandonamos o cadáver pondo para trás das costas o acto que lhe deu origem.

Fora da esfera da carnificina, regresso à arena onde as palavras que não disse me mordem e esbofeteiam e cabeceiam. Afinando o quadro para o espectador míope, posso dizer-vos que sou o homem nu ao redor do qual as palavras que fui incapaz de dizer na altura certa — palavras mágicas? — cospem em coreografias de humilhação o meu fado. Os livros, uma vez que se devoram uns aos outros, são de espécies diferentes, de forças distintas. O mesmo sucede com os dias. Há dias capazes de me engolir de supetão, enquanto outros se contentam com carícias.

Não existe, do Homem feliz àquele que é devorado por ideias suicidas, uma relação sincera com o mundo. Inevitavelmente, aos olhos de um sábio, somos crianças embeiçadas por paraísos artificiais, os quais, a cada ano, são aperfeiçoados para que não nos apercebamos da patranha da miragem. De pé ou de joelhos, o Homem, esse simulacro de Atlas, deve recusar-se a ser visto como uma coisa. Nem que dê a vida por isso.

 

Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

20.11.20

O suicídio é a prova última da ruína do Homem. Questionamo-nos como podem eles suceder e, uma vez que acontecem, perguntamo-nos qual é o nosso papel nessa grande tragédia. O suicídio põe a nu duas coisas: a nossa impotência e a distância a que estamos do outro. Aquele que julgámos conhecer não era senão uma ficção por baixo da qual o verdadeiro Homem, atormentado por uma fanfarra de demónios, se contorcia em vão, sem hipótese de fugir. O suicida é alguém cuja vida não é senão um exorcismo solitário: afastar a morte a todo o custo, eis a sua labuta perene. Assim que o demónio entra, tal como acontece com a depressão, jamais deixará de o atormentar.
 
O suicida nasce de um choque de realidades: a vida alcançada e a vida sonhada são dois universos paralelos. Será o suicida o mais ingénuo dos homens ao querer mais do que a vida lhe pode dar? Não há senão respostas gaguejadas, entrecortadas pela dor.
 
Pôr cobro à vida é o desfecho de alguém incapaz de viver mais um minuto com a tragédia interior. O suicídio, frise-se com a mais garrida das cores, não deriva de um capricho efémero, mas da mais insofismável impotência diante de um interior em ruínas. O Homem desiste: “Sou incapaz de erigir aquilo que tombou”.
 
Surpreende-me que se procure deslindar os porquês do suicídio, submetê-lo à camisa-de-forças da lógica, conduzi-lo à província cartografada da razão. Quem por aí se abalança não está em condições de falar sobre a morte. Não tenho a menor ideia de como salvar alguém nessa situação, supondo que tal é possível.
 
O suicídio ataca sobretudo os Homens mais apaixonados. Como Cioran escreveu, um amor total, não cumprido, não pode levar senão à ruína. Não se regressa do fracasso ileso. Aquilo que somos — o nosso melhor — é insuficiente para o outro, para o mundo. É uma experiência aterradoramente transfiguradora.
 
No suicida, as palavras apagam-se e ressuscitam no momento seguinte como veneno. É como tentar sair do inferno: a saída está reservada a um punhado de Homens.
 

Lamiré sobre o suicídio, Roberto Gamito

 

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