Quando seguimos religiosamente a monogamia no mundo das ideias, desperdiçamos um mundo de possibilidades. No mundo real o tabuleiro é vasto e as peças mutantes. A decisão ponderada nunca se concretiza sem tensão. Não devemos consentir que o mundo descartado nos paralise qual Medusa e nos impeça de avançar, no entanto, se nos embeiçarmos pela ideia e fizermos dela uma espécie de mantra, estaremos, mais cedo que tarde, a afunilar o cérebro.
É vital não dar grande margem de manobra ao ego. O pior que pode suceder é parirmos uma ideia capaz e sentirmo-nos endeusados por ela e daí em diante observarmos o mundo apenas por essa lente. Sem nos darmos conta, o mundo encolherá drasticamente.
Em todo o caso, somos aquilo que fazemos repetidamente. Verdade absoluta que aniquila sem hipótese de desforra aquela frase feita de que podemos criticar o que a pessoa faz e não o que ela é. Uma das maiores mágoas do Homem deve-se ao sentimento de que apenas uma fatia diminuta dos seus talentos é aproveitada. Na maioria dos casos, são talentos hipotéticos, os quais gravitam segundo órbitas excêntricas em torno da nossa cabeça e amiudadas vezes nunca chegam a ver a luz do mundo palpável.
Walt Whitman, poeta americano, pai do verso livre, escreveu, na obra Canto de Mim Mesmo, algo memorável: Sou grande, contenho multidões. Não é uma ideia nova, antes e depois dele há versões para todos os gostos, desde a Bíblia até aos romances de cordel.
Seja como for, no contexto da obra, adquire uma importância singular. Com efeito, estar a braços com a arte é abrir a cabeça e consentir aos espíritos e aos animais que nos habitam uma espécie de consumação.
Somos habitados por diversos animais, como se dentro de nós decorresse um casting permanente e furioso, várias versões de nós mesmos, versões viáveis, inviáveis, uma miríade de formas de atacar o mundo, sendo que cada uma delas é dotada de uma dança única. No entanto, são raras as que se tornam reais, que nos possuem, por assim dizer. A consciência do desperdício de possibilidades carrega um rastro de dor, vivenciada amiúde em silêncio e em sofrimento. Em suma, a dor é a consciência dos destinos que ficaram por realizar. Se acreditarmos nos universos paralelos, em cada um de nós reside a semente do infinito, cada decisão poder-nos-ia conduzir a um novo mundo, a um novo universo, a uma nova dança.
A angústia de que poderia ter sido tudo diferente se tomássemos esta ou aquela decisão, se tivéssemos ouvido este ou aquele talento que suplica para sair, acompanhar-nos-á a vida toda.
Talvez seja útil chamar Adam Smith, filósofo e economista, autor do livro em Riqueza das Nações, ao barulho. A divisão de trabalho, termo por ele parido, está no cerne do aumento de produtividade. O mundo ecléctico de Whitman cedeu lugar ao mundo da especialização.
Para citar Alain de Botton, dedicarmo-nos a um trabalho, de preferência durante a vida inteira, faz todo o sentido económico. Querendo ou não, metamorfoseamo-nos em peças cada vez mais minúsculas de uma máquina cada vez maior. O propósito está fora das cogitações porque, em última instância, não entendemos a razão pela qual labutamos. O absurdo da existência nunca anda muito longe.
Karl Marx, atento leitor de Smith, percebeu o lado benéfico de uma economia especializada, mas pôs ênfase nos bastidores desse processo de desmantelamento mental. À medida que a máquina do capitalismo se aperfeiçoa, a nossa vida torna-se mais monótona; a repetição nauseante acabará por matar os nossos talentos.
Num contraponto feliz à época, n’A Ideologia Alemã, Marx sublinhou a ideia de que os Homens deveriam ter vários trabalhos.
Curioso notar que, nos tempos que correm, houve uma espécie de fusão macabra das duas profecias, a de Smith, há muito concretizada, e a de Marx, mas de uma forma enviesada.
No mundo actual, há quem se desdobre em vários trabalhos, não a caça, a pesca, a pastorícia e a crítica como Marx havia plasmado, mas diversos trabalhos onde o Homem não passa de uma marioneta guionada em que o lado inteligente — sublinharia humano — é altamente desaconselhado.
Perverso perceber como a multiplicidade de trabalhos — trabalhos onde o uso do cérebro é altamente reprimido sob pena de recebermos castigos — nos atrofiou o miolo.
A nossa ocupação é determinante para moldar quem somos. O pescador e o psicólogo olham o mundo de forma distinta. Será que presentemente não passamos de marionetas? E este contínuo tagarelar presente nas redes sociais será que nos pertence ou tem origem nalguma espécie de Homem dos Robertos ou ventríloquo?
Não estamos a ser estúpidos ou ingratos se dissermos que a vida alcançada é-nos amargamente insuficiente. Este pensamento tem o perfume da tristeza. Talvez o artista, o poeta que devíamos perseguir para nos efectivarmos, para usar uma ideia de Agostinho da Silva, tenha sabido disto desde o início. A arte é o único meio para pormos as nossas versões cá fora e quem sabe diminuir a angústia existencial.
![Canto de Mim Mesmo, Roberto Gamito Canto de Mim Mesmo, Roberto Gamito]()