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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

04.05.21

O reconhecimento de um trabalho
de uma vida, de uma queda.

O vazio, em retrospectiva, é a biografia de Deus. O papagaio mostra-se-á chocado, assim replicando os valores do Homem. Felizmente há um cartapácio de gritos. Devemo-lo a visionários da desgraça.

Vénus decapitada pela educação, cio em luto e uma multidão de onanistas a sofrer com a gaita afónica na mão.

A felicidade existente em determinadas coordenadas. Dito isto, urge não deixar assentar a poeira na língua, ao contrário dos livros mortos, ainda podemos pugnar contra ao tempo. Entrementes, morreu outro escritor, bateu as botas com um livro atravessado nas goelas.

Sentia-me belo, fazia o tipo de um sem-número de demónios. E, no entanto, pouco distava de um naco de carne pendurado num gancho. A cólera, ao contrário do amor, eterniza no cérebro a razão pela qual nos passeamos pelos meandros da cidade com uma faca nos lábios. Há quem troque a faca pela rosa tentando, com isso, perfumar a morte.

Se medíocres, versos nascem e de seguida esperam a sua vez no matadouro do esquecimento. Uma flor no seio da cidade pútrida. O poeta, incansável e imbecil, procura algo que a sustente, justifique, proteja.

Ao olho do colérico dá a ideia que o fermento se apossou da turba dos inimigos. A negociação não é uma boa ideia, comenta o bárbaro para o poeta. Meu caro bardo, põe para trás das costas o poema, esquece o canto e honra, de uma vez por todas, o sangue nos antípodas da música.

E cá para nós, o poeta fará vénia a qualquer nome sonante. Desde que não emperre a eufonia não oferecerá obstáculos. Enfim, paleio nada afim da liberdade, do humanismo, entre outras coisas que ficam bem dizer num banquete. Mas nem só de derrotados se faz a História.

Num sítio de coordenadas mutantes, o aedo armadilha a sua obra para que, chegada a sua glória póstuma, os parasitas e os ofendidos expludam em estilhaços de inveja.

A vida, o trabalho, a queda, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

20.12.20

O empenho dos personagens em esquecer o futuro era manifesto.
O narrador, cujo nome não interessa deslindar, parecia engasgar-se ao tentar legendar superiormente o sucedido. Possivelmente, encontrou um ponto de contacto inesperado com as suas criações. Quem diria que após tantos anos a engendrar ficções ainda haveria um resquício autobiográfico naquilo que lhe escorria dos dedos.

Um escritório como tantos outros, atulhado de pessoas e sonhos quebrados. Um dia inteiro naquilo — a mesma lengalenga sem nome a que muitos chamam trabalho — e não há uma alminha caridosa que se atire da janela para animar o dia. Noutras alturas, a imagem de um Homem a olhar pela janela, provavelmente à cata de um perfume que o insuflasse de esperança, conduzir-nos-ia a um estado meditativo. Todavia os tempos mudaram, vivemos num mundo em que o interior e o exterior se equivalem; as escapatórias, as fugas para um sítio melhor esfumaram-se. Resta-nos o suicídio, como que regressados pelo trilho do silêncio à única questão relevante da condição humana, como escreveu Albert Camus.

Nem sequer há vontade de falar. Se nos obrigam a repetir mais uma vez ‘preferia não o fazer’, atiramo-nos de pronto para os braços da morte. No tempo em que era fácil encontrar o amor essa ideia seria completamente estropiada por um mar de possibilidades. Ao olharmos pela janela, pensávamos: o amor, a felicidade andam por aí, urge continuar as buscas. Acalentávamos ingenuamente a ideia de um dia tudo ser diferente. Entretanto, passaram-se décadas e as antigas danças mil e uma vezes adiadas metamorfosearam-se em amargas recordações. Somos uma bailarina fundida à cadeira embalados pelo ruído atordoador num palco inclinado.

E se visse um estrangeiro intrometer-se na narrativa do abismo — alguém dotado de um olhar maravilhosamente inédito, com um coração apto a rasgar a monotonia. Quando novos, a brochura prometíamos, ao falar da vida, qualquer paisagem aparentada ao paraíso. De facto, fomos ludibriados.

Em certos recantos do escritório, um homem cujo nome se mesclou ao eco do edifício repete para ninguém as suas magias. Tenta, virado para a parede, exorcizar a vida demoníaca que gradualmente se lhe infiltrou na carne. Baba-se e gagueja, esbraceja e esperneia, porém nenhuma frase surte efeito. Apelidaram-no de xamã reformado. Fala com os espíritos, mas os espíritos não lhe passam cartão.

Em certas alturas festivas, a empresa propõe-nos uma foto de grupo. E dignidade, questiona alguém. Isso ficará para mais tarde, responde o faraó da pirâmide perecível. Tiramos a foto para a posteridade. Sozinhos, que é como quem diz, rodeados de fantasmas. Mais tarde, noutro século, a fotografia será levada para laboratório a fim de ser analisada ao microscópio. Façam o que fizerem, não encontrarão sequer vestígios de alegria.

A empresa está a passar por uma fase difícil, cantarola o patrão naquela voz de poeta rouco. Só conseguiremos manter os postos de trabalho daqueles que estiverem dispostos a vender a alma ao Diabo. Não peço para mim outra coisa, responde o cadáver vertical.

Cadáver Vertical

 


Roberto Gamito

14.12.20

Quando seguimos religiosamente a monogamia no mundo das ideias, desperdiçamos um mundo de possibilidades. No mundo real o tabuleiro é vasto e as peças mutantes. A decisão ponderada nunca se concretiza sem tensão. Não devemos consentir que o mundo descartado nos paralise qual Medusa e nos impeça de avançar, no entanto, se nos embeiçarmos pela ideia e fizermos dela uma espécie de mantra, estaremos, mais cedo que tarde, a afunilar o cérebro.
É vital não dar grande margem de manobra ao ego. O pior que pode suceder é parirmos uma ideia capaz e sentirmo-nos endeusados por ela e daí em diante observarmos o mundo apenas por essa lente. Sem nos darmos conta, o mundo encolherá drasticamente.

Em todo o caso, somos aquilo que fazemos repetidamente. Verdade absoluta que aniquila sem hipótese de desforra aquela frase feita de que podemos criticar o que a pessoa faz e não o que ela é. Uma das maiores mágoas do Homem deve-se ao sentimento de que apenas uma fatia diminuta dos seus talentos é aproveitada. Na maioria dos casos, são talentos hipotéticos, os quais gravitam segundo órbitas excêntricas em torno da nossa cabeça e amiudadas vezes nunca chegam a ver a luz do mundo palpável.

Walt Whitman, poeta americano, pai do verso livre, escreveu, na obra Canto de Mim Mesmo, algo memorável: Sou grande, contenho multidões. Não é uma ideia nova, antes e depois dele há versões para todos os gostos, desde a Bíblia até aos romances de cordel.
Seja como for, no contexto da obra, adquire uma importância singular. Com efeito, estar a braços com a arte é abrir a cabeça e consentir aos espíritos e aos animais que nos habitam uma espécie de consumação.

Somos habitados por diversos animais, como se dentro de nós decorresse um casting permanente e furioso, várias versões de nós mesmos, versões viáveis, inviáveis, uma miríade de formas de atacar o mundo, sendo que cada uma delas é dotada de uma dança única. No entanto, são raras as que se tornam reais, que nos possuem, por assim dizer. A consciência do desperdício de possibilidades carrega um rastro de dor, vivenciada amiúde em silêncio e em sofrimento. Em suma, a dor é a consciência dos destinos que ficaram por realizar. Se acreditarmos nos universos paralelos, em cada um de nós reside a semente do infinito, cada decisão poder-nos-ia conduzir a um novo mundo, a um novo universo, a uma nova dança.

A angústia de que poderia ter sido tudo diferente se tomássemos esta ou aquela decisão, se tivéssemos ouvido este ou aquele talento que suplica para sair, acompanhar-nos-á a vida toda.

Talvez seja útil chamar Adam Smith, filósofo e economista, autor do livro em Riqueza das Nações, ao barulho. A divisão de trabalho, termo por ele parido, está no cerne do aumento de produtividade. O mundo ecléctico de Whitman cedeu lugar ao mundo da especialização.

Para citar Alain de Botton, dedicarmo-nos a um trabalho, de preferência durante a vida inteira, faz todo o sentido económico. Querendo ou não, metamorfoseamo-nos em peças cada vez mais minúsculas de uma máquina cada vez maior. O propósito está fora das cogitações porque, em última instância, não entendemos a razão pela qual labutamos. O absurdo da existência nunca anda muito longe.

Karl Marx, atento leitor de Smith, percebeu o lado benéfico de uma economia especializada, mas pôs ênfase nos bastidores desse processo de desmantelamento mental. À medida que a máquina do capitalismo se aperfeiçoa, a nossa vida torna-se mais monótona; a repetição nauseante acabará por matar os nossos talentos.

Num contraponto feliz à época, n’A Ideologia Alemã, Marx sublinhou a ideia de que os Homens deveriam ter vários trabalhos.
Curioso notar que, nos tempos que correm, houve uma espécie de fusão macabra das duas profecias, a de Smith, há muito concretizada, e a de Marx, mas de uma forma enviesada.
No mundo actual, há quem se desdobre em vários trabalhos, não a caça, a pesca, a pastorícia e a crítica como Marx havia plasmado, mas diversos trabalhos onde o Homem não passa de uma marioneta guionada em que o lado inteligente — sublinharia humano — é altamente desaconselhado.
Perverso perceber como a multiplicidade de trabalhos — trabalhos onde o uso do cérebro é altamente reprimido sob pena de recebermos castigos — nos atrofiou o miolo.

A nossa ocupação é determinante para moldar quem somos. O pescador e o psicólogo olham o mundo de forma distinta. Será que presentemente não passamos de marionetas? E este contínuo tagarelar presente nas redes sociais será que nos pertence ou tem origem nalguma espécie de Homem dos Robertos ou ventríloquo?

Não estamos a ser estúpidos ou ingratos se dissermos que a vida alcançada é-nos amargamente insuficiente. Este pensamento tem o perfume da tristeza. Talvez o artista, o poeta que devíamos perseguir para nos efectivarmos, para usar uma ideia de Agostinho da Silva, tenha sabido disto desde o início. A arte é o único meio para pormos as nossas versões cá fora e quem sabe diminuir a angústia existencial.

Canto de Mim Mesmo, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

12.12.20

O padre é, sem sombra de dúvidas, a melhor profissão do mundo. Ao contrário de um trabalho dito normal, no qual nos pedem para vergar a mola, é preciso levar a cabo uma coisa mesmo marada para se ser despedido. Na conjectura actual, temos emprego hoje e amanhã estamos na rua. A vida eclesiástica, por outro lado, parece-me prometedora para quem quer ter um emprego para toda a vida, coisa raríssima nos dias que correm. Não entendo por que razão os pais, os quais dão tanto valor à estabilidade emocional e económica dos filhos, não os aconselham mais nesse sentido.

Outra: nunca vêem o patrão — e o que isso implica, a saber: discussões, reuniões e discursos intermináveis sobre coisa nenhuma —, e, crescidos como são, excelsos leitores de linhas bonitas, não ignoram a alegria que é laborar nessas condições. Amiúde o patrão surge como uma figura geradora de atrito e gravidade. Espanta-me como é que nunca apanhei um padre a levitar.

O comum dos mortais, nos quais me incluo a contragosto, experiencia o que é ser padre, no máximo, uma vez por semana. Mesmo que quiséssemos, nunca conseguiríamos mentir sobre quão bela é a experiência de labutar na ausência de chefia. É como se nos fosse dada uma carta de alforria provisória. Andamos soltinhos pelos corredores como se fôssemos artistas de uma companhia de bailado. Até dá gosto ver.

O padre vive essa experiência continuamente. Trabalhar, na óptica do padre, é uma experiência enriquecedora e serena. Assim é fácil fazer a apologia do sofrimento quando se tem um trabalho que é um luxo.

Se Deus é Senhor, o padre é uma espécie de mordomo que nunca necessita de se preocupar com os caprichos do patrão. Faz festas — ainda que de duvidosa qualidade, sejamos sérios, a igreja, casa de Deus, podia ser usada para banquetes e festividades mais emocionantes —, e, para não parecer tão mal, fala do patrão garantindo aos convivas que Deus é sinónimo de amor. De vez em quando, pega na Bíblia, um género de calhamaço cheio de recados, e lê uma passagem ao calhas. É um ritual respeitável de molde a não se sentir tão culpado pela vida que granjeou.

Além disso, como se estas vantagens não fossem já numerosas e aliciantes, bebe vinho e come durante o trabalho. Quem, à excepção de um barman, se pode gabar do mesmo?
E aí reside a falsidade. O padre faz a apologia de uma vida regrada quando, diante do rebanho, leva uma vida de luxo.

 

Padre, a melhor profissão do mundo - Roberto Gamito

 

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