Roberto Gamito
01.03.22
O tradutor é possivelmente o mestre supremo na arte das desculpas. Traduz uma obra de 50 páginas e desculpa-se em 100. Aqui está o meu trabalho, mas digo-vos já que está uma bela porcaria, eis o resumo das notas introdutórias. Seria impensável o mesmo noutras profissões.
Imaginemos o médico em cenário de cirurgia. Aí está o homem operado, comenta o médico aos familiares, mas digo-vos já que agora tem a pila na testa, também não faz diferença, tem 80 anos. A pila caiu durante a cirurgia e como estava a operar as virilhas decidi pô-la noutro sítio para não atrapalhar. Espero que haja compreensão da vossa parte.
Começo a achar que a morosidade da maioria das traduções se deve ao tradutor precisar de tempo para erigir um monumental pedido de desculpas. Já que foi incapaz de brilhar na tradução, que, segundo as palavras dele, é deficiente por estar cercada de possibilidades, pretende ficar na história da literatura graças às justificações. Se a coisa fosse feita às escâncaras, em vez de prémios para as melhores traduções, existiria prémios para as melhores notas do tradutor — que é um eufemismo pomposo para ‘peço desculpa, fui incapaz de realizar o meu trabalho em condições’.
O prémio de melhor pedido de desculpas de 2021 vai para…António Samuel, que traduziu a comédia perdida de Homero. O trabalho sublime e apatetado — perdoem-me a escolha de palavras — é de inegável valor para as nossas letras. Verteu para português uma das obras fundamentais da literatura universal com um rigor característico de bêbado. O poema original fala de alhos, enquanto a tradução refere-se a bugalhos. Não há qualquer relação de parentesco entre a obra original e a tradução, não acertou numa linha sequer. Se houvesse leitores neste país, seria apedrejado na rua dia sim, dia não. Não obstante a sua mediocridade como tradutor, transcendeu-se no maior pedido de desculpas de que há memória. No decorrer das quinhentas páginas, onde pôs as suas deficiências por extenso num tom barroco e indecifrável, vemos toda a sua veia de caguinchas virtuoso, o que não é de somenos. Este prémio serve para recompensar o seu falhanço estrondoso.
Por decisão conjunta do tradutor, editor e uma pessoa ao calhas, optou-se por um lamiré do texto original, a fim de não pôr o prestígio da obra original e de Homero em causa. Como alguns devem saber, o original encontra-se perdido e ninguém ganha o suficiente no meio literário para inventar. Bem vistas as coisas, temos um pedido de desculpas e uma tradução a uma obra de n páginas que ficou por um parágrafo traduzido, e uma resma de páginas em branco — para encher. Decisão acertada.