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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

08.12.21

O Homem é um animal escandalosamente mentiroso. Este raciocínio, perfeitamente defensável — tal como, aliás, o seu contrário — pode terminar num pensamento em relação à fragilidade da palavra. Não obstante o esforço do ser humano, a verdade foge-lhe sempre entre os dedos. Todavia não nos precipitemos a inocentar o Homem, caso contrário teríamos de fechar os tribunais e mandar muito martelinho para o desemprego.

O poeta, se quer merecer o seu nome, deve, em primeiro lugar, perder o pé antes de cantar. O intérprete, seja ele engravatado ou um arúspice, que é como quem diz, uma espécie de sacerdote cujo labor é ler o futuro nas entranhas dos outros, labuta no sentido de iluminar o que a dúvida obscureceu. Em todo o caso, por cada feixe de luz há uma ninhada de sombras que nasce. Se o arúspice é um embusteiro, é questão que não nos compete solucionar, seja como for, ao menos faz um óptimo trabalho ao massajar as miudezas.

A felicidade é a ficção ao alcance de literatos e analfabetos.
Actualmente, em virtude de o Homem não suportar o eclipse, existe a obrigação de conservar o sorriso o maior tempo possível. A simpatia é um exercício de resistência — esboçar o sorriso enquanto o mundo interior é dominado por vândalos.
Ninguém, a não ser os médicos, quer ouvir as crónicas das guerras interiores.

A felicidade é algo incapturável e efémera, qual ave feita de espuma. Em certos momentos-limite (a nossa era está prenhe deles, uns reais, outros ficcionados), guerras, pandemias e picos de desigualdade económica — ser feliz é quase rebelar-se contra a atmosfera colectiva. Só não é punível com pena de prisão porque ainda não é mensurável. No dia em que se inventar a ciência da felicidade, aparelhos para a medir, cientistas tristonhos empenhados a criar a felicidade do zero, o Homem será multado ou preso se for além da felicidade permitida. Num mundo cada vez mais almofadado, a felicidade transforma-se em veneno. O corpo assustadiço é incapaz de conviver com a felicidade do Outro — esse bicho estranho em virtude da felicidade.

A polícia manda-nos encostar o carro.
Polícia da felicidade: Boa noite.
Pessoa feliz: Muito boa noite.
Polícia da felicidade: Ui, vejo que temos um caso grave. Não se importa de responder a um inquérito?
Pessoa feliz: Disponibilizo-me sem entraves, adoro preencher inquéritos.
Polícia da felicidade: O caso é mais grave do que eu pensava. Amigo, você não está capaz de viver em sociedade.
Pessoa feliz: É por causa da minha poupa?
Polícia da felicidade: Não, a poupa está no limite, mas passa, mas a sua felicidade não está condizente com o ego colectivo. Então o mundo está como está, a esfarelar-se todo, são guerras, é a pandemia, são as desigualdades económicas, as alterações climáticas, a extinção dos sapos e você aparece-me com um sorriso desses? Estou em condições de o pôr na choldra.
Pessoa feliz: Não faça isso, tenho filhos para criar e canários para alimentar.
Polícia da felicidade: Então prometa-me que ao sair daqui vai para a taberna tecer comentários azedos sobre os nossos políticos, rematando cada frase com “isto assim não pode continuar!”
Pessoa feliz: Não minto, não vai ser fácil, mas pelos meus filhos abdico de ser feliz.
Polícia da felicidade: Pode ir, mostrou-se arrependido, que isto sirva de exemplo.

Em jeito de achega final, a felicidade pode ser entendida como uma incompatibilidade entre os nossos interesses e os dos outros. Dentro desta linha, aconselho a infelicidade a quem deseja permanecer camuflado e sem problemas na sociedade.

Pensar, bárbaro costume que põe o homem em sarilhos é a coisa mais debilitante e nociva, causa doenças e confere-nos rótulos amesquinhadores, isto é, a forma mais rápida de nos expulsarem da festa dos nossos dias. Estamos aqui à beira de uma proposta, em tom satírico, daquilo que podemos designar como venenos: pensamento e felicidade.

O Homem deixou de pensar e curou-se, eis o que dirão os médicos do futuro. Em caso de doença, a verdade surge como um punhal. Jaspers disse algo como “o médico só tem o direito de dizer a verdade se o paciente aguentar”. Ora, presentemente, vivemos numa altura em que ninguém sabe lidar com a verdade. Assim sendo, de que vale saber a verdade se não a podemos contar a ninguém. Desconfio que a medicina transformar-se-á num workshop de um fim-de-semana. Não há necessidade de acertar, de dizer a verdade, só interessa manter a mentira viva.

Regressemos à palavra. A palavra afasta o Homem da verdade; quanto mais agarrado ao seu estatuto enobrecedor, mais mentiroso é o Homem. Não obstante conseguirmos ludibriar o outro com discursos envernizados, há habitantes do nosso corpo que nos desmascaram, a saber: sangue, fezes e urina.

Face a esta inquietante verdade, fica difícil contra-argumentar os artistas contemporâneos que vêem na merda a sua matéria-prima. Ao contrário da palavra, a urina e as fezes são mensageiros incorruptíveis da verdade.

A análise à urina oferta-nos uma espécie de relatório do mundo interior do Homem. O interior é decomposto em substâncias e números. A urina é péssima amiga, não saber guardar segredos. Enchemos o bandulho, cometemos loucuras no campeonato gastronómico, seja doces, seja fritos, e ela desmascara-nos, contrariando a nossa ladainha: “Não, senhor doutor, eu não comi fritos, eu é mais brócolos e favas.”

Mija neste boião e dir-te-ei quem és.

Felicidade, palavra, Roberto Gamito

 

 


Roberto Gamito

01.11.21

Comendo como gente grande as migalhas reservadas aos pardais, ao mesmo tempo que penso na fartura, afasto-me aos saltinhos de temas como a política, economia, sociedade e seus meandros. Não tenho dentes para assuntos tão duros.

A leveza com que encaro o meu fracasso como opinador assanhadamente contemporâneo diz muito sobre a vidinha dum gajo: desprezo pelas deixas vozeadas num tom de tenor e cambalachos nos bastidores dos palcos das ditas causas nobres não me seduzem. Sou mais inactual que um fóssil.

Muitos houve que dividindo a mão raquítica entre a arte e os copos não foram além de uma obra medíocre. Um livrinho a raiar o afónico, recebido pela crítica com céu nublado — que é como quem diz, sem estrelinhas. Mais maduros, já que a madurez, em calhando, também ataca o homem, abdicaram do caminho estéril da arte para se focar num outro, o bem mais promissor caminho da carraspana crónica. Quantos bêbedos famosos não devem a sua fama a tão difícil decisão. Abandonar a escrita em detrimento da bebida não é uma decisão tomada de ânimo leve. Ambas estavam lá no início. No início, não era o verbo, mas o copo de tinto. Em todo o caso, o mundo da bebida continua a oferecer mais oportunidades que a província exígua das artes. Já para não falar das cunhas. No mundo da bebedeira, o aspirante a bêbedo só necessita de vontade e disciplina. Se visto assim, o mundo das cadelas líquidas é possivelmente o último reduto onde a meritocracia consegue prosseguir a sua obra.

Quanto à verdade, procuram-na com avidez, não ficando atrás de filósofos e cientistas. Em obediência a estes novos factos, somos obrigados a remodelar com quadros e flores a nossa opinião em relação aos bêbedos. Num mundo de hipócritas, que os há aos pontapés e debaixo de qualquer pedrinha, o bêbedo é o herdeiro da iluminação, messias cujo labor é oferecer a verdade ao míope — ao sóbrio que nem uma toupeira —, a qual, tal como as saídas das mil boquinhas da ciência e da filosofia, não se percebe nada. Citemos Shiki, poeta japonês, a fim de dar aquele ar de falsa erudição: “Sinto a dor e vejo a beleza”.

Canta um galo, ao longe. Todavia, nestas províncias mais humildes, o dia do bêbedo ser reconhecido como sábio ainda não chegou.

Bêbedo e a verdade, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

19.11.20

Levantamos a cabeça do atoleiro, eis o ápice do heroísmo. A verdade não pode ser pronunciada senão a gaguejar, escoltada por lágrimas e em pose de derrotado. As verdadeiras confissões são arrancadas in extremis, quando as máscaras deram provas da sua ineficácia. Espanta-me que hoje a verdade se faça acompanhar pela propaganda da clareza, da jactância e da confiança. A verdade, caros colegas de atoleiro, situa-se nos antípodas da empáfia.
 
Soltas as primeiras lágrimas, não preciso de nenhum apoio, nem de nenhum encorajamento; de joelhos sou um animal sem arabescos: por muito derrotado que esteja, chegou a minha hora de falar. Atingido esse patamar de despojamento, pomos em discurso as nossas ruínas (— cada frase — um animal espantadiço —; cada crença — um muro esboroado; cada amor falhado — uma mina colapsada), esse labirinto por onde nos fomos perdendo, dia após dia, sem entrever saída, pese embora à superfície nos abraçássemos a um norte postiço.
 
Transformamo-nos naqueles que outrora criticámos. Manada embrutecida, a qual trabalha sem deleite nem porquê, dado que descortinar a resposta poderia dinamitar o sistema, daí a velocidade galopante que nos tentam impingir em todas as veias. O que é a vida senão aquela cena do filme de Roy Andersson, Canções do Segundo Andar, em que chegamos com a carrinha de caixa aberta e despejamos uma pilha de crucifixos, que é como quem diz, crenças. A nossa pequena contribuição para a descrença colectiva, esfalfamo-nos para que o outro nos veja como criatura sem cruz, desagrilhoada da luz — a mais sinistra das ilusões. Vingar-nos-emos, então, de todos os deuses, grandes e pequenos, reais e fictícios, mortos e por nascer. Empilhamos os nossos fracassos num momento nulo e estéril, eis a nossa cruz, pensamos nós, no entulho.
 
Que desperdício de energia tão alheio a qualquer mudança. Livramo-nos do artifício, adiamos a metamorfose.
 

Manada embrutecida, Roberto Gamito

 

1


Roberto Gamito

09.03.16

Não querendo entrar em detalhes, até porque o detalhe é, por norma, uma coisa minúscula e pouco dada a dilatações e eu sou, vamos supor, o parente mais afastado do pequeno, isto é, um sujeito inequivocamente circular, de raio considerável, e perdi-me: ei-la, a primeira frase do blog. Mais: se a gordura fosse ainda formosura, atribuir-me-iam decerto o cognome O Grande, o grande saqueador de frigoríficos. O que, bem vistas as coisas, ir-me-ia impossibilitar a tarefa de penetrar em detalhes; nem veredas quanto mais detalhes. Sucintamente, um início pouco propício a coisas — um precipício ambíguo e enjorcado a transbordar de palavras. Avancemos para as verdades insofismáveis: são crescidinhos e pressinto — sou uma referência internacional nas premonições — em vocês um invejável caparro para aguentar os meus raciocínios.

 

 

Entrei à socapa numa sala desprovida de detalhes, que é como quem diz, uma sala vazia, e empreendi durante largos segundos e outros tantos delgados uma meditação azeda acerca do mundo, do grande até às minudências que lutam dia e noite por um lugar ao sol — ou à sombra — num dos rodapés da História, todavia, tendo bem presente o pensamento filosófico do séc. XXI, o qual postula este tempo como a era das contradições, não fui muito longe na meditação, para não chatear ninguém. Agora que penso no que pensei, admito que foi tempo perdido. Cronos leva sempre a melhor. Correr contra o tempo é pueril, além de cansativo. E a parte chata é que não vamos poder estar presentes na cerimónia de entrega das medalhas, por motivos de força maior. Compromissos profissionais. Se não fosse pelo aparato que designamos erroneamente de vida, e outros particularmente sabujos, nomeadamente os taberneiros, designam por ‘esta merda’, não estaríamos aqui; nem acolá, e desconfio que nem tampouco na casa do caralho. É a vida que nos trouxe cá, o fruto de uma fodanga ocasional, o fruto do acaso, ou fruto do amor, o fruto da inseminação artificial: uma salada de frutas em que muitos passam impecavelmente por bananas. Somos o fruto de uma árvore genealógica outrora regada por um númen, o qual, corre o boato, foi assassinado por um senhor de farto bigode. Basta de elucubrações acerca da temática morte; já demonstrei que sou dotado em matéria de parvoíce, marotamente parvo, apesar de curvado, vergastado pelo destino ou pelo quotidiano, não sei, os gajos revezam-se; a idade já pesa para lá de muito, e tudo isto me confere uma postura ecológica irrepreensível, basta para isso que me pinte de verde.

 


Fomos sequestrados ao nada por instantes e ninguém deu pela nossa falta. Deus morreu, Freud morreu, o Woody Allen não se está a sentir muito bem e eu para aqui a escrever um blog em vez de estar a ganhar dinheiro. Opções.

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