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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

18.11.21

— Olá, excelso colega de diálogo.
— Vieste em má altura. Vou deixar-te, tenho coisas para fazer.
— Não me faças uma coisa dessas, não vim preparado para solilóquios.
— Tenho um caldeirão cheio de indígenas ao lume, não me posso demorar muito.
— Não sabia que eras canibal.
— Não era, mas sabes como é, gosto de experimentar novos sabores. (Põe-se com a mão na orelha à escuta.) Ainda não ouço gritos, é sinal que tenho uns minutos para pôr a conversa em dia. Que contas?
— Nada. Queria apenas falar.
— Sobre o quê?
— Sobre nada.
— Lembras-te de quando começámos a falar?
— Não, era muito pequeno.
— Não mintas, nasceste com uma determinada idade e assim te mantiveste, pelo menos foi isso que o autor destas linhas me contou.
— É verdade, não nego, porém um dia fui dar com a minha backstory num caderninho e nunca mais fui o mesmo. Recuei à infância e por lá fiquei durante muito tempo.
— Queres que te conte uma história?
— Para quê?
— Para te animar.
— Não sou do tipo que se anime com histórias.
— Animas-te com quê?
— Com tragédias.
— Disparate, ninguém fica animado com tragédias.
— Não sabes aproveitar a vida. Há lá coisa melhor que puxar uma cadeirinha e ver uma tragédia a desenrolar-se à nossa frente?
— Mas que absurdo é este?
— Meu camarada, o destino esqueceu-se de nós, estamos entregues aos caprichos do acaso. Para quê importarmo-nos com o outro?
— Para quê esta farsa, dias após dia?
— Não há nada mais hilariante do que a infelicidade do outro, reconheço.
— Infelicidade que é transformada em felicidade.
— Como dizia o outro, na natureza nada se ganha, nada se perde, tudo se transforma.
— Esse raciocínio tem uma excepção. A estupidez humana: permanece inalterada desde o início.
— Aproveitando a atmosfera leda da conversa, sabias que a Glória morreu?
— Tomei conhecimento. Quem a teria enterrado?
— Contaram-me que o trabalho foi levado a cabo por uma comitiva de abutres.
— Abutres?! Mas essas aves não apreciam cadáveres?
— Apreciam, porém a Glória já estava muito velha, a carne demasiado rija e eles resolveram enterrá-la. Segundo eles, o cadáver desfeava a paisagem.
— Faz sentido. Bem vistas as coisas, os necrófagos são os fiscais das paisagens e são eles que impedem que o mundo se transforme num pomar de cadáveres.
— Está um elefante na sala!
— Deixa-o estar, a conversa está interessante.
— Um elefante na sala!
— Se te faz confusão, alcança aquele saco de amendoins e dá-lho. É uma bela entretenga para o trombudo.
— E ele acalma-se?
— Claro que se acalma. Tens é de te levantar do sofá: ele vai pensar que chegou a hora de ver documentários sobre animais.
— Não achas que devias soltar o elefante?
— Sim, porém sinto-me demasiado cansado para criar novos hábitos.
(Ouvem-se gritos.)
— Tenho de ir, preciso de tratar do almoço.
— Dá-me um beijo.
— Não te dou beijo nenhum.
— O que é que eu faço sem o teu beijo?
— Escreve um poema e não me aborreças.

Teatro Acabado, Roberto Gamito

 

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