Roberto Gamito
15.11.21
— Não somos ninguém.
— Mas estamos mortos ou morreu alguém?
— Em princípio, estamos vivinhos da silva.
— Como é que vamos festejar isto?
— A vida?! Com humildade e sobriedade. Infelizmente, não há orçamento para personagens como nós.
(Entretanto, os convivas da mesa ao lado foram assaltados pela questão: será que um Silva perde o apelido aquando do seu falecimento? Foi tudo quanto logrei apurar, retomemos o diálogo das nossas personagens.)
— Trabalhamos de graça, é isso? Na pior das hipóteses, seremos obrigados a vagabundear por toda a eternidade neste diálogo. Isso é lá vida para quem não tem vida?
— E se nos arrependêssemos?
— Mas andas metido em negociatas clandestinas ou em assuntos de fazer chorar a mãe mais marmórea?
— Nada disso, o meu currículo de paladino da virtude está imaculado, mais dois anos a dizer que luto por um mundo melhor e sou canonizado.
— Disseram-me que é necessário morrer primeiro. Em tempos também tive esse sonho, todavia estar morto não se me afigura um futuro desejável, principalmente a longo prazo.
— Concordo, é coisa para nos entediar volvidos uns anos.
— E se esquecêssemos a conversa e fizéssemos um esforço para sermos felizes.
— Devias ter ido para poeta.
— Como é que está o teu pénis?
— Está a inchar.
— Deixa lá ver isso.
— O que estás para aí a dizer?
(Na mesa ao lado, ocorria ao mesmo tempo a conversa entre dois guardas medievais.
— Não vais acreditar no que o gajo me disse.
— Ao menos dá-me contexto, não me contes isso a frio.
— Lá estás tu com as tuas manias. Assim como assim cada um interpreta as palavras à sua maneira. É tempo perdido, mas pronto, faço-te a vontade. Disse-lhe: Aqui está o cárcere onde irá passar o resto dos seus dias. O que falta em condições compensa em ratazanas.
— E ele?
— Saiu-se com esta: “que chiqueiro encantador. Parece que encontrei finalmente o sítio ideal para escrever as minhas memórias”.
— E tu?
— Eu questionei-lhe sobre as suas intenções últimas, não vá ele ter ganas de sair de lá e governar um país e ganhar o Nobel da Paz ou coisa que o valha. De desgraças está o mundo cheio.
— É o perigo de estar muito tempo fechado, começamos logo com ideias para mudar o mundo. Ar puro e murros nos queixos é o que eu aconselho a gente dessa laia.)
— Calma, o diagnóstico não demora nada.
— Cá está o monstro.
— Não lhe chamaria monstro, mais pequenote; em cada homem reside um cultor da hipérbole.
— E então? Há salvação para o menino?
— Sim, o inchaço deve-se, creio, ao tesão.
— E isso tem cura?
— Tem e não tem. É um padecimento intermitente. Em todo o caso, posso aconselhar-te formas de aliviares a dor.
(O diálogo prossegue com a pilinha de fora.)
— Agradeço o parecer técnico, mas cala-te um bocadinho, se não for pedir muito. Não suporto palavras, tenho alergia a diálogos.
— Há alturas em que não sei se seria melhor deixar de ser teu amigo e encher esse lombo rechonchudo de porrada.
— Não vejo necessidade de violência. Ok, vou fazer o esforço de continuar a cavaquear contigo. Se ganhar uma hérnia na língua a culpa é tua. Chamar-me amigo é um exagero, amigo, conhecemo-nos há coisa de minutos.
— Finalmente uma pinga de juízo. Posso contar uma piada para amenizar a atmosfera?
— Tem mesmo de ser?
— Estou com apetites.
— Então vá lá, não quero ser eu a cortar-te as asas.
— Conheces a história do velho da aldeia no bordel?
— Não, acho que não.
— Recusou o broche grátis porque a rameira não lhe disse boa noite.
— Diz-me uma coisa: é daquelas piadas para rir ou para fazer pensar?
— Pára com isso, tenta raciocinar uma vez que seja. Pensar não te faria mal.
— Isso é o que tu dizes, não me apanhas na curva, a História está apinhada de suicidas que o foram por pensarem demasiado.
Comigo é pensar o mínimo, e mesmo isso já é de mais.
— Puxa lá pela cabeça!
— Deve ser isso, saí da escola pela simples razão de não esforçar a cachola e agora via-me obrigado a reflectir porque um menino não gosta de mim como sou — burro como um imbecil.
— Excepto a tua pessoa, careço de esperanças na humanidade.
— Caraças, estás mesmo desesperado.
— Deixa estar, o melhor é não te obrigar a ser uma pessoa que não és.
— Desististe de mim? Pronto, o último candidato a salvador foi-se. E agora?
— Assustaste-me, por momentos pensei que ias ter uma ideia.
— Não me atrevo, alcancei uma bela reputação de papalvo e não tenciono desembaraçar-me dela.
— Queres comer uma chapada no focinho?
— Não há mais nada? Não sou exigente, com uma sopa fico bem.
— Ai, perdão, sou demasiado bom para chapadas. Só me desiludes.
— Desilusão? Fá-la durar, que é a última.
— O que queres dizer com isso.
— Sei lá, tu é que és o pensador.
— É engraçado que quanto mais falo contigo, mais parvo fico.
— Fico feliz por ti.
— Como se fosses uma escola ao contrário.
— Tive uma ideia!
— É um escândalo!
— Queres encontrar-te com Deus?
— Não estou para aí virado, até julgo que me faria mal. Quanto mais pessoas conheço, mais infeliz fico. Ou me torno eremita nos próximos tempos ou ainda morro de tristeza.
— Falta-te humildade. Até uma criatura fictícia nos pode ensinar, nos pode enriquecer, nos pode tornar mais conscientes do nosso lugar no mundo.
(No mesmo bar sucedia aquilo que se costuma designar engate. Eis um fragmento dessa interação.
— Fodemos?
— Perdão?!
— Se calhar não me expliquei bem, quero conhecê-la melhor.
— Assim já é outra conversa. Quer impressionar-me com galanteios de taberneiro, para que eu fique viciada nesse pequenote que trás aí escondido atrás da braguilha. É isso, não é?
— Afirmativo, este maroto só me dá trabalhos. Se não fosse pedir muito, pedia-lhe que tomasse conta dele durante quinze dias.
— Está a brincar? Quinze dias? E se me afeiçoo ao bicho? É como tratar de um animal selvagem: acolhemo-lo fragilizado, tratamos dia e noite das suas mazelas e no final custa muito soltá-lo em liberdade.
— Pois, o que é que o coração lhe diz?
— Diz que é o princípio de algo muito bonito.
— Ai a porca!
Regressemos ao diálogo pela porta da arte, recordando que um dos personagens continua com o pirilau de fora.)
— Dizes cada coisa, deves ter sido endrominado por uma daquelas palestras motivacionais. Vou dar à sola. Há o perigo de nos tornamos amigos se prolongarmos a conversa.
— Bem lembrado, não queremos isso.
— Não saio mais parvo desta conversa.
— E eu não saio mais esperto.