Roberto Gamito
19.11.21
— Não cantes.
— Não estou a cantar, camarada.
— Eu conheço-te, vi na tua cara esse olhar que antecede a cantoria.
— Já nem sequer se pode cantar?
— Podes, mas é preciso ter uma licença especial. Tens de te convencer que cantar é uma arte reservada a poucos, não pode estar entregue a qualquer vagabundo.
— E no banheiro?
— Só se não perturbar o vizinho.
— E na rua?
— Só se houver mais de três cães a ladrar à tua volta.
— Três cães a ladrar?
— Exacto, três cães a ladrar abafam o canto e o fiscal da cantoria deixa passar.
— E se for um tenor num dia mau?
— Tem de apresentar uma justificação. Anda aí muita gente a passar-se por tenor.
— Quem me diz a mim que não é um gajo que bateu com o dedo numa pedra e se pôs aos gritos? Há quem aproveite o grito para começar uma carreira de tenor.
— Parece-me estapafúrdio.
— Acredita, são os chamados oportunistas do grito. Há muitas saídas profissionais para quem aprecia gritar e guinchar, a saber: carpideiras, fadistas e activistas das redes sociais.
— Posso citar alguém ao calhas sem mencionar o autor?
— Força, estamos cá para isso.
— Os animais que degolamos…
— Apanhei um torcicolo só a tentar alcançar a referência.
— Deixa-te disso. Não saber, não saber ao certo, dizer coisas à queima-roupa é uma grande bênção. Se eu pudesse era imbecil como tu.
— Palpita-me que percorreste em bicos de pés o corredor dos elogios de modo a não acordar nenhum.
— Qual é aquela tirada imortal que fica sempre bem em qualquer diálogo?
— É boçal?
— Depende da apreciação.
— E se fosses para a cona da tua mãe?
— Acertaste, não falhas uma, passaste ao lado de uma grande carreira de telepata.
— Posso bater-te?
— Se me quiseres bater, bate-me agora. Daqui a bocado tenho de sair.
— É isso que eu gosto em ti: a disponibilidade para levar na pinha. És raro.
— Estima-me, meu caro, estima-me que eu não duro sempre.