Roberto Gamito
16.11.21
— Sinto-me vivo e nunca me senti mais feliz.
— Isso é tudo uma data de mentiras.
(Ouve-se o estardalhaço de um tabefe.)
— Obrigado pelo tabefe, estava a precisar.
— Não tens de quê.
— Desculpa, ignoro o que me passou pela cabeça. Perdoa-me.
— O que importa é que te sintas infeliz.
— Nunca me senti pior.
— Isso é que é preciso. Adivinha quem é que me ensinou todas estas coisas bonitas?
— Deus?
— Morno.
— Estou perto?
— Não, o tempo é que está para os lados do calor.
— Este homem dá cabo de mim.
— Lá estás tu a difamar-me junto do público.
— Que público?
— O público que há-de vir.
— És capaz de deixar o futuro em paz?! Não lhe ponhas esse fardo em cima dos costados.
— Ponho em cima de quem, então?
— Desde que não o ponhas em cima de mim.
— Não me fazias esse favor?
— Ou paras com isso ou finjo que não te conheço.
— Bem, mudemos para um tema mais alegre. Recordas-te do dia em que me atirei ao rio?
— Sê mais específico, fazes isso semana sim, semana não.
— Quer dizer que tento matar-me semana sim, semana não e tu não te recordas de nada. Belo amigo que me saíste. Talvez te troque por um jornalista do Correio da Manhã, ele ao menos lembrar-se-á de tudo.
— És muito prolixo nas tentativas de suicídio, devias ser mais contido.
— Não tenho culpa de não ter nascido com o talento para o suicídio.
— Não vás por aí.
— Custa-te ouvir as verdades?
— Vamos lá ser sérios: a memória foi coligindo essas tentativas num único acto. É extraordinário as partidas que a memória nos prega.
— A mim não me engana.
— Ai não engana. És melhor que os outros?!
— Claramente, não pertenço à ralé que consente o ludíbrio da memória.
— O que é que comeste ontem?
— Comida.
— A resposta é um tudo-nada pobre.
— Não te chega? Olha o menino que precisa de detalhes, mas és algum tipo a fazer a peritagem à volta de um sinistro? Comida é comida.
— O nome da comida que ingeriste, filhote!
— Sei lá, não lhe perguntei o nome. A ocasião não se proporcionou, além disso sou uma pessoa muito calada. Acredita se quiseres.
— Não te safaste mal, meu pequerrucho.