Roberto Gamito
22.02.22
Nas esplanadas vêem-se os últimos espécimes verticais desta era de sobras.
Conheço uma sala afastada do centro, longe dos olhares curiosos e ávidos de boatos. Deseja encontrar-se comigo num sítio onde nos podemos agredir sem o empecilho de terceiros nem a grandiloquência das variações levadas a cabo pelas testemunhas?
A rua espreguiça-se graças ao comércio. À noite, encolhe graças ao vaivém nervoso do bêbedo. A rua simula o coração.
Do alto da torre, as pessoas cá em baixo transformam-se em formigas. Suicido-me e durante a queda as formigas readquirem a sua antiga forma. A procissão de migalhas humanizada pelo suicídio de quem se atira do alto.
A paixão, vocacionada para o disparate, arredonda-nos por excesso. Nada de extraordinário, tão-somente outra manifestação do fascínio pelos precipícios.
Apesar disso, o bárbaro persiste no armário a tirar notas.
O galão arrefece, vigiado pelo olhar inocente — ou faminto? — do catraio. Lá fora a guerra é encetada com ganas de ficar para a História.
Uma mesa para os maiores, outra para os menores e uma terceira para quem hesita entre categorias. A dor crónica de quem se senta na mesma mesa menor, faça sol ou chuva, faça ou não proezas dignas de génio. O destino é como ter lugares marcados.
Já é altura de deslindar o que se acoita no coração de um homem colérico.
A casa é um pavilhão multiúsos em miniatura. Há folia, bailes, banquetes, desporto, teatro e o mais.
A linha a fazer as vezes da cicatriz. Em lugar algum encontrei aquilo que perdi. A frase, ricamente povoada de cadáveres, simula uma capital vandalizada pela escoada piroclástica. Cada verso uma Pompeia.
Os anos passam e o discurso, outrora prolixo e inchado de certezas, dá lugar às ruínas cantantes, caso a veia poética se interponha entre nós e o mundo. Reduzir ao essencial, o ofício de espremer cadáveres com o fito de lhes beber o sumo.
O Diabo foi possuído pelo demónio da depressão. Os poetas malditos, sua única freguesia, estão a caminhar para a mansidão. Do nono círculo de Dante chega-nos um choro que abalroa o canto das sereias. Conheço um quarto humilde, sussurro à mulher, onde nos podíamos seduzir sem recurso a adjectivos. Uma sedução pejada de verbos seria do teu agrado, excelsa donzela?
Somos o somatório das despedidas e pouco mais.
A relação acabou. Aí disse adeus, não apenas à mulher com a qual partilhei a tumultuosa província dos lençóis que a fome enrodilha, burlada pelo tempo até não sobrar nenhum detalhe que possa povoar a mais magra das molduras, oh, a fotografia-memória da qual nos pudéssemos orgulhar quando a vida nos visitasse, mas também as cenas que dinamitei pela minha falta de jeito como actor.
Este século é solo pouco propício ao sonho. É difícil alimentá-lo numa terra de doidos.