Roberto Gamito
24.02.22
O que é concreto apaga o pensamento, ao passo que a abstração acende-o. Cabe-nos a nós, Zés e Joanas-Ninguém, entrarmos à socapa nos maiores museus e vandalizarmos as obras mais conhecidas. Plantar vultos onde ontem havia rostos conhecidos, obrigar as estátuas a regressar ao bloco de mármore, ao casulo das possibilidades, pôr o urinol no seu sítio antigo, já chega de mijar no chão, plantar riscos e bigodes, camuflar o conhecido, baralhar pintores e público e, caso tudo falhe, incendiar tudo. É preferível assim a ver tudo destruído pelo descuido de uma bomba que errou o alvo.
Nos cenários de guerra, a casa transforma-se em crisálida no interior da qual o animal em mutação aguarda a Primavera impontual. Felizmente, a economia naufragou, foi encontrada sem vida na margem de lucro. O Homem será objecto de um processo que o condenará — mas ele defender-se-á brilhantemente a fim de aumentar o grotesco da cena. O mais inocente do homens cumprirá a mais pesada das penas. Eis o cadáver do civil metralhado nas ruas.
No parapeito destes dias, ao rés do qual a cidade arde, e as bombas orquestram uma sinfonia medonha, acode-nos uma ideia: só o idealismo mais ingénuo pode acreditar que o diálogo pode interromper a dança da cólera. Em tempos incertos, onde as balas calam o canto dos pássaros, o Homem acumula no seu arsenal de superstições toda a espécie de deuses e santos.
O problema do século XXI é que nunca foi grande espingarda a discernir vivos de mortos. Contrariando o relatório da autópsia, o déspota levanta-se da maca — o ódio fez as vezes de Jesus. Lázaro renascido graças à cólera. A guerra altera a nossa relação com aquilo que nos esmaga. A revolução coperniciana no modo de encarar a arte é a seguinte: tomava-se “o que nunca poderia ter sido” como ponto fixo e brilhante, tipo estrela, ao redor da qual massas rochosas orbitam povoadas com o seu exército de formigas rezingonas.
Era imprescindível para o seu prestígio como empresário da noite ter casas de fado abertas durante a guerra, nas ruas, nos aeroportos, nos esgotos, em cima das árvores. A guerra tem esse condão: transforma a casa em casa de fados.
Nos anos antes da guerra era uma questão de honra — ou moda — produzir vidas que imitavam porcelana.
As maratonas de sexo, a fornicação típica e a sublimada, eram tentativas vãs de simular o abismo que separava os chorões da nova escola e os chorões da cepa antiga. Em suma, duas escolas de fado distintas.
Regressemos ao início do problema. Com o nascimento do primeiro Homem, a figura do déspota veio à tona do papel com ganas de nos fazer gritar, que data da saída do Paraíso. Começou a afinar-se o que viria a ser o seu mais imutável papel. Esse é o princípio da rivalidade entre a luz e as trevas. Finalmente um motivo sólido para uma querela: o Homem. A guerra leva os seres humanos de volta a um cenário em que o diálogo é visto como supérfluo ou mero capricho. Doravante o idioma oficial é o grito.
Um pouco antes do bombardeamento, o centro comercial é o centro de peregrinação onde o Homem dito descrente se encontra com o objecto. Mercadoria, se preferirem. Em cada objecto procura a peça que falta. Tarefa votada ao fracasso, e todavia continua a pôr peças no lugar deixado pelo coração, qual criança a forçar peças nos buracos errados.
A entronização do reflexo enaltecedor — a grande farsa do século — e o esplendor pirotécnico das distrações fez-nos gatos de olhos arregalados numa retrosaria, embasbacados com esse paraíso de novelos.
A moda prescreve o ritual segundo o qual o ridículo deixará de ser ridículo. O ridículo pode ser medido pela quantidade de fiéis. Muitos seguidores e o ridículo deixa de ser entendido como tal. Daí o frenesi à volta de uma nova moda: urge conquistar fiéis para o ridículo deixar de ser ridículo.
Estaremos a dias de assistirmos às maiores bizarrias de sempre. O sonho da influencer é enxertar nos interesses pessoais negócios, na sua diversão editada o seu entendimento coxo sobre a guerra. O seu papel é o de lucrar a cada disparo. Inesperadamente, é o mesmo sonho do ditador. Se o drama for Lázaro, a influencer é Jesus.
Viajo para conhecer o porquê dos meus passos, escreveu Walter Benjamin. Os tempos são inegavelmente outros. Não é isento de perigos trazer a lume a mediocridade de Narciso. A arte é onde as coisas são libertadas da servidão de serem úteis. Ou será o amor? Ou será uma coisa qualquer da qual ignoro o nome?
A mulher mais bela do mundo é capaz de sabotar uma cidade, fazendo parar o trânsito. Nesse dia tomou-se a decisão de se construírem mais estradas. Não obstante esta medida precipitada, fruto de um fraco entendimento acerca do poder da beleza, a mulher entupiu as principais artérias da cidade.
É original, se bem que nem sempre bonito, o modo como estes anos nos chegaram a nós. Contemporâneos de todas as patetices, embriagados nessa subjectividade manca, a qual pode ser usada como sucedâneo do pensamento, somos despojados de certezas. As nossas magras ilusões não sobrevivem em ambiente de guerra.
Convento a céu aberto, onde as freiras à paisana se juntam nas caixas de comentários para rezar com afinco, isto é, espalhar emojis condizentes com o cenário trágico. Ah, o efeito narcotizante de utilizar o emoji certo no momento certo.
Péssimo jogador, o homem contemporâneo faz as suas jogadas de costas voltadas para o tabuleiro, dado que é incapaz de desviar o olhar do espelho. No grande jogo de dados que é o destino do Homem, a guerra revela a nossa impotência face ao jogo. As temíveis redes sociais, a arena das ambições onde os gladiadores tentam vencer o adversário com bico de pato é um magro entretém quando tudo desaba. E um dia, no auge do desnorte, caiu uma bomba como nenhuma outra semeando um deserto onde ontem havia uma cidade.