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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

08.03.23

O mundo tornara-se turvo; os contornos, políticos; os sacerdotes, açougueiros — que acolhedor! Chamem-me Ninguém, caso não consigam desembaraçar-se do silêncio de outra forma.
Neste ou noutro episódio, apropriamo-nos das fragilidades através da respiração dos demais.
A respiração é o sinal de fumo, quer para o amor, quer para a morte. A perturbação na respiração revela que os capítulos da nossa biografia se revezam fora dos altares da previsibilidade.

O algoritmo assusta-se, todavia tira notas.
Tudo isto vaticinava uma boa diversão, comentaria o bobo se lograsse engendrar a coreografia de cinismo, a qual, feita de passos atrás, não é senão um pedido de socorro vozeado por um afónico.

As soluções que me ocorriam não eram satisfatórias. Eis que, nestes momentos em que podemos deitar tudo a perder e o fio da vida, aquele que fintaria o do Destino, se nos escapa dos dedos, nestes segundos grávidos começam a amadurecer lâminas e cadafalsos, inicialmente camuflados nas flores e nos perfumes da memória, de seguida às escâncaras. O Homem começa a ruir sem que lhe acudam turistas — dá-se o despetalar das amizades, o caruncho prossegue a sua obra num amor do qual sobrou uma chuva de arpões e nem a luz macula a escuridão que se apossou de certos homens. Uma constelação de cicatrizes e nenhuma promessa de ressurreição. Ah, a vida é tão-somente uma catástrofe paulatina.

Alguém deixou a porta aberta. Ao ver ao mastodonte no sofá, veio-me à memória uma linha do livro Baleia de Paul Gadenne: "Julgáramos ver um animal que dera à costa: contemplávamos um planeta morto." Não serei capaz de forjar outra frase capaz de se ocupar da minha primeira impressão ao ver o filme The Whale.
O filme exige um olhar sem arabescos: estamos diante de um cachalote encalhado a desenvincilhar-se da vida numa margem alheia às rotas turísticas. Tal como o mítico cetáceo, pouco ou nada há a fazer quando dá à costa. Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que nem precisam de diálogos. Embora o filme se mova sem pressa no terreno do desconforto, cada deixa é um escape. O retrato fiel só é pintado quando as palavras se ausentam da casa-gaiola de Charlie, interpretado brilhantemente por Brendan Fraser, o qual carrega o filme às costas no interior de uma prótese de última geração que, ironicamente, funciona como sarcófago. Suspeito que as outras personagens são tão-somente artifícios para tornar o filme mais digerível.

Ignoro se o filme foi ou não empobrecido por ecos manhosos de Moby Dick, parece-me um processo similar ao que é usado para insuflar os frangos com água para parecem mais pesados do que são. Seja como for, há uma inquietação nas águas, a baleia branca é manuseada e decomposta por uma rede de interpretações. O inalcançável, o que andamos aqui a fazer, a relação com a religião e como a solidão tem uma visão singular sobre a salvação, o labirinto das interpretações até nos mais pequenos gestos, as manhas de quem persegue e de quem foge. Quiçá exista uma homenagem ao livro de Melville, daí os ensaios, a literatura, o desenlace da história, o romper com os formatos de antanho.
A vida orbita em torno de um desejo de capturar qualquer coisa, uns é mais carapaus, outros baleias brancas. No entanto, é aqui que a Baleia nos oferece uma face pouca explorada por exegetas. A baleia branca é uma promessa de regresso, tem de permanecer incapturável, caso contrário redundará no fado de Ulisses. É impossível regressar a Ítaca, outro nome para passado. 

"Não estou interessado em ser salvo." Quem já ouviu esta frase da boca de um suicida saberá o que é levar com o arpão no lombo. O homem a sós com as suas migalhas, coordenadas onde a maquilhagem e o discurso enaltecedor não singram. Sem a ficção de salvação o que sobra?
Perante uma plêiade de sinais, assistimos, ao longo do filme, à concretização da profecia há muito anunciada. O que é que andamos a fazer com a nossa vida? Houve breves momentos em que a minha cabeça se tornou um festival de ecos durante o qual ricocheteavam frases soltas do conto de Paul Gadenne: "gostava de ser a baleia", "quantas das pessoas que ouviram falar da baleia se contentaram com um encolher de ombros e voltaram às suas vidas. Como se víssemos uma baleia todos os domingos!"; "Somos pequeninos, sem nenhum poder, somos tão pequeninos e impotentes…; Leviatã encalhado; aquela baleia dava a ideia de ser a última da sua espécie, como cada homem cuja vida se extingue nos parece ser o último homem."

 

The Whale

 

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