Roberto Gamito
29.04.21
Oh meu vão megafone que não magnifica voz nenhuma. Cercado por ideias incendiárias como uma cidade nos tempos do império mongol, G., meu comparsa doutras andanças, fez-me um pedido invulgar. Suplicou-me que o tornasse o mais capaz dos personagens. Recusei-me a prestar tamanho auxílio, G. sempre foi um homem igual aos outros. Estranhei o pedido dada a altura em que foi.
Lá do alto, cuspiam nos meus passos. Queria sair à força do labirinto, todavia ignorava a que divindades recorrer a fim de ser alvo de um milagre.
Da minha dúvida não arredo pé. Apesar de o tempo insistir em brincar comigo, não abdico da curiosidade típica de garoto, a que vê em tudo coisas para brincar. Pudesse eu ser aquele que se atira palavrosamente ao mundo com um sorriso nos lábios, aquele que se está a marimbar para o nexo, o que se borrifa para o geral e para o particular. É preciso beber em memória de cada momento. Cada dia merece uma coroa-de-flores. Companheiros de uma vida.
A dor é certa, é preciso, qual faquir, aprender a beber com uma espada enfiada na garganta. Mas o que é isso se tudo resvalará para o pó? Catapultando prosa venenosa, vou ensinando abutres e hienas a desviarem-se de mim. Por ora, não quero nada com a morte. É angustiante fingirmos que estamos vivos só porque ainda não encontrámos uma morte à nossa medida.
Não sei por vezes o que há entre dois pensamentos. O momento onde o silêncio recua para dar lugar ao suspiro. Quem foi feliz foi-o sob algum juramento e cada vez que se lembra disso percebe quão infeliz foi durante a vida. Invisto a minha prosa contra o outro como quem esgrima. Uma saraivada de golpes no cérebro alheio. Nada surte efeito. Falar com o outro é tão inútil que dá vontade de pôr termo à vida no final de cada conversa.
Despertaram-me o coração do seu sono de 30 anos. Não me peçam que vos detalhe o que há de mágico nesse ritual. É um avançar que desemperra. Quanto ao resto, sei tanto como vocês.
E bato o pé, comunica a personagem. Erra sem destino; ontem era a dança que o movia.
São patéticas as minhas peregrinações até ao nome da minha amada. No lugar dela, um pedestal vandalizado vaga a vaga pela memória. Enquanto a luz não chega enformada numa figura derradeiramente vertical, entretenho-me a retirar o pus da cruz ao sabor da prosa, como quem tira batatas de um pacote.
O tempo é velho, a ampulheta incontinente. O amor é querer o mundo e darem-nos uma caricatura. O amor é querer o bolo e darem-nos migalhas. Suspeito que esta frase não pertence aqui: o beijo é vir à tona dos teus lábios. Eis a minha missão: encontrar pessoas que me impedem de ir ao fundo e tentar pagar-lhes na mesma moeda.
Uma cara antes fechada que, ao receber um amo-te, se abre como uma romã.
A minha voz não presta para levar o eco ao altar. Ali o gigante, além já pequenote. Ah, porra, resvalei para o lado esconso da biografia.
Não gosto de viajar, a minha jornada resume-se a caminhar para mim e não para os demais. Desde aquela temporada na casa de espelhos que tento fugir a essa burla. Por conseguinte, não é de espantar que a humanidade esteja tão desnorteada.
De bocarra bem aberta, assim carnívoro, aprisiono-te no meu sudário de dentes e gengivas. Do outro lado desta história, o Narciso exclama diante do reflexo: vida sensaborona que até dá gosto. Ah, bandido, quem diria — uma piada.
Insipidez com a qual polvilhaste até à medula as pessoas, o trabalho e os dias. Receberam-na como um fermento da nova escola. E eis que o grande nada cresceu, imparável.
Usemos, então, terminologia consumista. Por estes dias é mais difícil encontrar uma ideia que queiramos levar para casa do que encontrar uma peça porreira na última semana de saldos.