Roberto Gamito
03.01.22
Não há dúvida — do meu ponto de vista míope, pelo menos — de que, se não queremos ser nomeados palermas profissionais, necessitamos de romper ocasionalmente o casulo do pensamento demasiado simplista de que a “comédia é para fazer rir”. Eu próprio, actor sem as deixas decoradas deste teatro destrambelhado chamado século XXI, defendo teimosamente a tradição do riso na comédia. Sem a possibilidade de deformar o rosto com a gargalhada, a comédia perde a verticalidade e resvala em águas estagnadas.
Permitam-me que vos inaugure a cabeça com este pensamento. Poderá a comédia sobreviver se cair nas mãos do inimigo, de um não-comediante? A comédia, partindo de pressuposto que é arte, é flexível, é metal fundente de futuras lâminas e, uma vez por outra, sai fora do molde. Enquanto arrefece e não arrefece, a comédia vai passando por uma miríade de formas. Apesar do triunfo das convenções, de tempos a tempos renovadas, a comédia, tal como a arte, é um ir além do molde. Sem esquecer o molde — caso contrário perdemos o pé e endoidecemos num cosmos vazio de referências.
No outro lado do espectro, no escaninho da luz onde os demónios exercitam a lábia, situa-se a triste turba enfadonha que se abalança para a ideia de que a comédia é para fazer pensar. Instalemo-nos nesta frase durante um minuto enquanto o tinto não vem. Desculpem a seriedade. E chamo a atenção para não ser acusado de cultivar o tédio dogmatizador, arte tão em voga nesta fatia de tempo que nos coube, quando há instantes me apresentava como vago detractor.
Há algo de fascinantemente patético em pedir ao humorista que faça o público pensar. Não é de modo algum estranho ao ritual da piada, todavia é uma consequência. Mas não haverá criaturas mais habilitadas para atiçar o pensamento em tão disponíveis cabecinhas? Um filósofo, um escritor, um pintor, um poeta ou um velhote sentado num banquinho a fazer tempo para o almoço? Por que diabo se pede a um humorista que nos espicace o miolo? Acaso pedimos a um pedreiro que seja capaz de levar a cabo cirurgias?
No decorrer desta orgia entediante — ó século que dás à luz tão macabros oxímoros —, mesclam-se ideias labregamente traduzidas, ecos mais em voga e de supetão dá-se corda a este carrossel de intenções que visam pôr o umbigo em destaque. As cabeças, vocacionadas para o vácuo, relevam-se numa estupidez despida de véus. Isto emprestou às nossas conversas pontos de vista inéditos rapidamente politizados. Faltará pouco para os desgraçados separem as côdeas segundo o quadrante político.
O “pensamento” (não fiques, leitor, desconcertado com as aspas; temos de tratar os “bois” pelos nomes — bandido, a fazer pouco disto tudo!) conseguiu elevar o banal ao estatuto de deidade.
Um fiasco completo. O novo deus não tem mãos no milagre e tudo permanece por reconstruir.
Este novo pensamento tornou-se um fenómeno avassalador na sua incapacidade de gerar novos mundos. A sua fragilidade, retirada do parênteses da timidez para o grito, ali ou acolá, entoada qual hino ríspido por um coro de papalvos, é o pilar de uma nova religião. Apesar do esforço de pensadores, escritores e poetas — partindo do pressuposto que não estamos a falar de figuras míticas —, o espaço entre o génio e o palerma está cada vez mais pequeno, os mil e um lugares do pódio interpenetram-se e acasalam, e hoje somos incapazes de destrinçar o último do primeiro. Eis as maravilhas de um mundo fluído, um abraço para o senhor Zygmunt Bauman. Seja como for, há sempre alguém que recebe de braços abertos o pecado de se submeter a uma comédia cujo fito é fazer rir. Era despachá-los com uma saraivada de chumbo — isso admite-se?!
Apesar das aparências de triunfo — muitas vezes os acólitos do pensamento enfezado confundem migalhas com medalhas de ouro —, todos crêem, de algum modo, numa nova espécie de Deus. O que principiou por ser um afastamento em relação ao riso rumo ao pensamento revela-se, sem surpresa (e por conseguinte sem comédia) um encontro com o fanatismo.
A purificação dos elementos é sempre indicativo de que o fanatismo está a ganhar seguidores.
O resultado é pobre, demasiado pobre. Não deveríamos nunca perder de vista a verdade: o pensamento que nega o riso, a ironia que o desmancha e o refaz, é um embusteiro. A vaniloquência pirotécnica seduz-nos graças ao aparato e ao barulho, porém, findo o breve fogo-de-artíficio, artimanha que passou ao lado de Actéon feito veado, percebemos que a noite permanece noite e fomos mais uma vez incapazes de a povoar com as estrelas da comédia ou da arte. Um pontinho de luz — uma gargalhada — de cada vez, de molde a tornar o mundo mais habitável.
Mais valia permanecer calado. Seria mais delicado da minha parte se não perturbasse as poucas entronizações que nos restam neste reino de mosquitos, o qual foi instalado pela mediocridade faraónica nestas venenosas águas estagnadas.
Laboro em arte o meu sangue para minar o apogeu dos meus parasitas.